Wednesday, July 30, 2025

OS RETRATOS DE BRUCE GILDEN

"Quanto mais velho eu fico, mais perto (das pessoas) eu chego."

Os retratos de Bruce Gilden não pedem licença — eles invadem.

Com seu uso marcante do flash direto e do enquadramento extremo, o fotógrafo norte-americano construiu uma linguagem visual inconfundível, que chegou ao paroxismo em Face (2015), publicado pela editora britânica Dewi Lewis. A série, feita entre 2012 e 2014, reúne retratos realizados nos Estados Unidos, Reino Unido e Colômbia. São rostos fotografados a centímetros da lente, iluminados de frente, em imagens que dispensam cenário e contexto. O fundo desaparece. Resta a pele, os poros, os olhos, os dentes — ou a falta deles. As marcas do tempo não são suavizadas, mas amplificadas.

Essa abordagem, já presente em parte de seu trabalho anterior nas ruas de Manhattan, se concentra agora inteiramente no rosto do outro — ou, como sugere o título do livro, na face, esse termo genérico que diz tanto e tão pouco sobre quem somos. Em vez de flagrantes furtivos no meio da multidão, Gilden agora pede permissão e monta o retrato. Mas isso não significa suavidade: há algo quase cirúrgico nessa intimidade forçada, algo que transforma o retrato em um exame.

O escritor Chris Klatell, que assina o texto de apresentação de Face, observa que há nesses retratados algo de “família” para Gilden — não no sentido afetuoso, mas como reconhecimento de um pertencimento marginal. São pessoas à margem, invisibilizadas pelo olhar social dominante. E o fotógrafo não se coloca acima ou à parte: ele compartilha, se aproxima, mergulha.

A proposta é, obviamente, incômoda. Críticos como Sean O’Hagan (The Guardian) questionaram a ética do projeto: seria um gesto de empatia ou um novo tipo de espetacularização da exclusão? Afinal, há uma linha tênue entre visibilidade e voyeurismo, entre a representação digna e a exposição brutal.

Mas os retratos de Gilden não se deixam classificar facilmente. Eles desafiam. Interpelam. E, acima de tudo, deslocam o espectador do lugar confortável da contemplação. Quem somos nós, afinal, quando olhamos para esses rostos? E o que revelamos — sobre nós mesmos — quando desviamos o olhar?

Gilden nos obriga a sustentar o olhar. Seus retratos não oferecem beleza convencional nem conforto narrativo. Eles nos confrontam com a presença plena do outro, sem filtros ou eufemismos. A proximidade extrema e a iluminação dura não são apenas escolhas estéticas: são gestos radicais de atenção.

Ao reunir rostos ignorados ou rejeitados, o fotógrafo ergue um espelho torto, em que somos convidados a reconhecer não apenas a alteridade, mas também os limites da nossa empatia. Face não é um livro para ser folheado distraidamente — é um convite ao desconforto. E, nesse desconforto, talvez resida justamente o seu poder.


Sunday, July 27, 2025

DOROTHEA LANGE

“Escolha um tema e trabalhe nele até a exaustão… o assunto precisa ser algo que você ame profundamente ou odeie profundamente.” - Dorothea Lange

Em 1936, uma mulher para o carro na beira da estrada, na Califórnia, e vê uma mãe com sete filhos, famintos. Ela tira cinco fotos com uma câmera Graflex 4x5. A terceira imagem, a mais célebre, torna-se um símbolo da Grande Depressão. A mulher na foto é Florence Owens Thompson. A fotógrafa é Dorothea Lange. E ali se cristaliza mais do que uma imagem icônica: se consagra uma forma de ver. Uma ética. Uma urgência. Um legado.

Dorothea Lange (1895–1965) não foi apenas uma das grandes damas da fotografia documental — ela foi uma das fundadoras de um jeito de narrar o mundo através da lente, com empatia, atenção e propósito. Seus retratos dos trabalhadores migrantes, desempregados e deslocados pela seca nos EUA não apenas denunciaram as injustiças sociais, mas também redesenharam a forma como a fotografia poderia servir ao bem comum.

A fotografia como ferramenta de transformação

Filha de imigrantes alemães, Lange cresceu em Nova York, onde estudou fotografia com Clarence H. White, um dos fundadores da Photo-Secession ao lado de Alfred Stieglitz. Aos 23 anos, mudou-se para San Francisco, abriu um estúdio de retratos e logo se tornou uma fotógrafa requisitada pela elite. Mas algo mudou durante a Grande Depressão. Ela começou a sair às ruas com a câmera nas mãos e o coração atento às dores que os jornais ignoravam.

Em 1935, foi convidada a integrar a equipe da Farm Security Administration (FSA), o lendário programa do governo Roosevelt que contratou fotógrafos para documentar as consequências da crise econômica em zonas rurais. Ao lado de nomes como Walker Evans, Gordon Parks e Ben Shahn, Lange viajou pelos Estados Unidos produzindo imagens que ainda hoje moldam nosso imaginário sobre o período. Mas ao contrário de muitos colegas homens, ela não buscava a "composição perfeita". O que interessava a Lange era o vínculo com o retratado. Seu trabalho foi uma espécie de escuta visual.

Migração, exclusão e humanidade

Se “Migrant Mother” virou seu retrato mais famoso, outras séries igualmente potentes marcaram sua carreira. Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, Lange foi contratada para fotografar o processo de internação forçada de nipo-americanos — cidadãos dos EUA tratados como inimigos após o ataque a Pearl Harbor. Suas fotos, sensíveis e críticas, foram censuradas na época e só vieram a público décadas depois. Ali, Lange mais uma vez recusa o espetáculo da dor e opta por imagens que restauram a dignidade dos fotografados, mesmo em meio à violência institucional.

Outro projeto significativo foi sua colaboração com o economista Paul Taylor, que se tornaria seu segundo marido. Juntos, publicaram An American Exodus: A Record of Human Erosion (1939), um dos grandes livros da história da fotografia documental — uma obra que mistura texto, depoimentos e imagens para contar a história dos deslocamentos forçados nos EUA.

Fortificar a imagem

Sobre palavras que cercam a fotografia como quem cerca uma casa antes da tempestade.

“Todas as imagens podem ser fortificadas por palavras”, afirmou Dorothea Lange. A frase, concisa e certeira, revela uma compreensão profunda do poder combinado da imagem e da linguagem. Não se trata de limitar a fotografia com explicações, mas de reconhecer que algumas imagens precisam de palavras como a pele precisa do osso: para sustentar, proteger, dar forma.

A imagem emociona, comove, prende o olhar — mas a palavra ancora. Constrói pontes entre o que se vê e o que se compreende. Torna possível a permanência de uma história que, sem contexto, correria o risco de virar puro símbolo ou ruído visual. No trabalho de Lange, esse cuidado se manifesta de forma exemplar: suas fotografias frequentemente vinham acompanhadas por nomes, datas, lugares, trechos de depoimentos. Cada legenda era um contrapeso ético à beleza formal da imagem.

Em tempos de excesso visual e leitura apressada, a reflexão permanece urgente. As palavras não servem apenas para descrever; elas podem restaurar, proteger, contextualizar. Fortificar. Como as estacas que cercam uma casa antes da tempestade, o texto pode amparar a fotografia diante do esquecimento ou da distorção. É nesse entrelaçamento que a imagem encontra não um limite, mas uma expansão.

Um olhar que continua a nos desafiar

O legado de Dorothea Lange não cabe numa legenda. Sua importância ultrapassa a história da FSA, dos anos 1930 ou das crises sociais que documentou. O que ela deixou foi um exemplo de como a fotografia pode se colocar no mundo: não como testemunha neutra, mas como agente de escuta e intervenção. Ela entendeu antes de muitos que fotografar é, também, um ato político.

Nos seus últimos anos, Lange foi uma das fundadoras da revista Aperture e preparava uma grande retrospectiva para o MoMA — que acabou sendo realizada postumamente, em 1966. Hoje, ela é celebrada como uma das maiores fotógrafas do século XX, mas também como uma voz fundamental na defesa da dignidade humana.

“Uma câmera é uma ferramenta para ensinar as pessoas a verem sem uma câmera”, escreveu ela. E talvez seja essa a chave para entender seu legado: Lange não queria apenas fotografar o mundo — ela queria que o víssemos com mais compaixão, mais clareza, mais responsabilidade.

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Thursday, July 24, 2025

TURISMO DA DESOLAÇÃO | AMBROISE TÉZENAS

Chernobyl, na Ucrânia

Ambroise Tézenas (n. 1972, Paris) é um fotógrafo francês cuja formação em artes visuais foi moldada por estudos na École des Arts Appliqués e no London College of Printing. Seu trabalho se destaca pela intersecção entre paisagem, arquitetura e memória coletiva. Ao longo das últimas décadas, Tézenas consolidou uma produção autoral consistente, presente em coleções públicas como a da Bibliothèque Nationale de France, além de colaborar com publicações de prestígio como The New Yorker, Le Monde e The Independent Magazine. Seu olhar é meticuloso, por vezes desconcertante, e frequentemente voltado às camadas invisíveis que moldam nossa experiência dos espaços.

Entre seus projetos mais provocadores, destaca-se I Was There (2015), ensaio que investiga o chamado “dark tourism” — termo cunhado por J.J. Lennon, professor da Universidade de Glasgow, para designar o fenômeno do turismo em locais marcados por tragédias. Durante seis anos, Tézenas percorreu o mundo visitando destinos onde o horror, a destruição ou a morte se tornaram atração para visitantes. O pacto era claro: ele deveria agir como um turista qualquer, fotografando apenas o que estivesse acessível ao público comum — sem credenciais de imprensa, sem bastidores.

A gênese do projeto remonta a uma experiência pessoal. Em dezembro de 2004, Tézenas passava férias no Sri Lanka quando foi surpreendido pelo tsunami que devastou o sudeste asiático. A tragédia matou centenas de milhares de pessoas, entre elas os passageiros do trem da rota Colombo–Galle, arrastado pelas ondas e lançado selva adentro, onde seus vagões permaneceriam como ruínas silenciosas de um desastre. Tézenas, alojado numa região elevada, testemunhou de perto a devastação e o luto que se espalhou pelo país. Anos depois, ao ler que os destroços daquele trem haviam se tornado ponto de peregrinação, ele se viu tomado por uma pergunta perturbadora: O que leva alguém a visitar um local onde viu tanta gente morrer? O que essas pessoas procuram ali?

Guiado por sugestões do próprio Lennon, Tézenas visitou lugares como Chernobyl, na Ucrânia, onde explosões e radiação transformaram a cidade de Pripyat em um marco global do colapso tecnológico. Esteve também no hotel onde Benazir Bhutto foi assassinada, no Paquistão, e no museu instalado no antigo centro de detenção e tortura do Khmer Vermelho, no Camboja. Outro cenário retratado é a cidade de New Orleans após o furacão Katrina, em que os sinais da destruição foram convertidos em parada obrigatória para ônibus turísticos.

A lente de Tézenas não procura o sensacionalismo. Ao contrário: é a aparente normalidade da visitação — o cordão de isolamento, a trilha sinalizada, a lojinha de souvenires — que se impõe como denúncia silenciosa. Suas imagens oferecem uma meditação visual sobre a espetacularização da tragédia e o embaraço moral que ela provoca. Como bem observou Dorrit Harazim, que escreveu sobre o projeto em sua coluna para a revista ZUM (14/09/2015), I Was There "nos confronta com a demanda de um mercado crescente de consumidores que anseiam por vivenciar, mesmo à distância segura, os resquícios do sofrimento alheio".

Esse ensaio sobre Tézenas está entre os muitos casos que Harazim costurou com rigor e sensibilidade em seu livro O Instante Certo (Companhia das Letras, 2016) — uma leitura altamente recomendada para quem busca compreender o alcance e as contradições éticas da fotografia documental contemporânea. Mas o trabalho de Tézenas se sustenta por si só como um comentário incisivo sobre o presente: um tempo em que a dor alheia, desde que bem iluminada, parece sempre prestes a virar atração.

Tour pelas ruínas do terremoto em Sichuan, na China
Prisão de Karostas, na Látvia - a prisão da qual ninguém conseguiu escapar

Museu Auschwitz-Birkenau, na Polônia
Prisão de Karostas, na Látvia - a prisão da qual ninguém conseguiu escapar
Grutas Park, na Lituânia
Chernobyl, na Ucrânia
Memorial do genocídio em Ruanda
Museu Auschwitz-Birkenau, na Polônia
Prisão de Karostas, na Látvia - a prisão da qual ninguém conseguiu escapar

Wednesday, July 23, 2025

O OLHAR ESTRANGEIRO NA FOTOGRAFIA

A história da fotografia é atravessada por deslocamentos. Não apenas os das imagens, que viajam no tempo e no espaço, mas também os dos próprios fotógrafos — homens e mulheres que trocaram de país, de língua, de horizonte. Estrangeiros que, ao pisar em terras alheias, descobriram uma nova maneira de olhar. E, talvez mais importante: revelaram àqueles que ali viviam uma face inédita de sua própria realidade.

Há algo de profundamente transformador no ato de ver de fora. O estrangeiro não tem os olhos adormecidos pelo hábito. Ele repara. Ele estranha. Ele sente o impacto do trivial. E quando esse olhar sensível se junta à linguagem fotográfica, o resultado costuma ser mais do que um documento — é uma reinterpretação estética e simbólica do lugar.

A LUCIDEZ DO ESTRANHO

Fotografar um país onde não se nasceu exige escuta. É preciso atravessar o ruído cultural, desaprender automatismos, reordenar referências. Nesse processo, o estrangeiro se torna quase um antropólogo visual: observa os gestos, a arquitetura da luz, os códigos sociais. E faz disso matéria de fotografia.

Por isso, tantos nomes fundamentais na história da imagem construíram suas obras longe de casa. André Kertész, húngaro de nascimento, só encontrou liberdade estética nos Estados Unidos, onde sua poética das pequenas coisas ganhou profundidade. Robert Frank, suíço, leu a América com uma sensibilidade que nenhum americano soube igualar — The Americans é mais uma elegia crítica do que um álbum turístico. Bill Brandt, nascido em Hamburgo, reinventou a visualidade da Inglaterra com uma combinação de surrealismo e crônica social. William Klein, americano radicado em Paris, devolveu a Nova York sua própria fúria, com uma estética vibrante, agressiva, urbana. A austríaca Inge Morath, com sua câmera e sua escuta, percorreu o Irã, a China, o México, transformando a alteridade em empatia. Brassaï, húngaro, traduziu a Paris noturna em imagens carregadas de sensualidade e mistério — como só um exilado seria capaz de fazer.

O que todos eles tinham em comum não era apenas o passaporte estrangeiro, mas a capacidade de não se acomodar ao previsível. Eles viam o que os outros já haviam deixado de ver.

QUANDO A FOTOGRAFIA VEM DE FORA

Esse fenômeno não é exclusivo do século XX. Desde o século XIX, fotógrafos europeus cruzaram oceanos para documentar o “Novo Mundo” — fossem exploradores, cientistas, comerciantes ou artistas. Suas imagens, muitas vezes atravessadas por exotismo e intenção colonial, também guardam momentos de genuína observação estética.

Francis Frith, na Inglaterra vitoriana, buscou no Egito uma monumentalidade visual que evocasse a eternidade. Felice Beato, italiano, documentou guerras e a vida cotidiana na Ásia com uma ambição de registro quase totalizante. Maxime Du Camp, ao lado de Flaubert no Oriente Médio, retornou com fotografias que revelam tanto sobre os lugares quanto sobre o olhar europeu que os enquadrava.

Há um paradoxo aqui: por mais enviesado que o olhar estrangeiro possa ser, é frequentemente ele quem mostra aos nativos aquilo que não sabiam que era belo, estranho ou relevante. O estrangeiro fotografa o óbvio como se fosse extraordinário — e, nesse gesto, nos ensina a ver de novo.

VER COMO SE NÃO SOUBESSE

Há um aprendizado fundamental na experiência do fotógrafo estrangeiro: o de olhar como se não soubesse. De desaprender o já visto. De sustentar o espanto diante do que se tornou invisível pela familiaridade.

Essa postura — mais do que qualquer técnica — é o que faz a diferença entre uma imagem protocolar e uma imagem reveladora. E ela pode ser cultivada, mesmo sem cruzar fronteiras. O estrangeiro, afinal, é menos uma nacionalidade do que uma atitude diante do mundo.

À BEIRA DO BRASIL

Nos próximos dias, este blog voltará os olhos para o Brasil — país que, ao longo do século XX, foi destino de fotógrafos estrangeiros cujas imagens hoje fazem parte do imaginário nacional. Homens e mulheres que chegaram como forasteiros, mas souberam ver o país com uma intensidade que ultrapassa qualquer categoria de pertencimento. 

Mas, antes de mergulhar nessas histórias, é preciso fazer essa pausa e reconhecer: o olhar estrangeiro não é apenas exótico ou curioso. É uma lente de reconfiguração. Uma forma de devolver o mundo ao seu estado inaugural — estranho, frágil, fascinante.

A seguir, imagens de fotógrafos citados anteriormente:

Bill Brandt (1904-1983)
Bill Brandt (1904-1983)
Bill Brandt (1904-1983)
Brassai (1899-1984)
Brassai (1899-1984)
Brassai (1899-1984)
Brassai (1899-1984)
Brassai (1899-1984)
Brassai (1899-1984)
Brassai (1899-1984)
Robert Frank (1924-2019)
Robert Frank (1924-2019)
Robert Frank (1924-2019)
Robert Frank (1924-2019)
André Kertesz (1894-1985)
André Kertesz (1894-1985)
André Kertesz (1894-1985)
André Kertesz (1894-1985)
André Kertesz (1894-1985)
André Kertesz (1894-1985)
Inge Morath (1923-2002)
Inge Morath (1923-2002)
Inge Morath (1923-2002)
Inge Morath (1923-2002)