Friday, July 11, 2025

STEPHEN SHORE | UNCOMMON PLACES

"É o tormento da minha existência ver a fotografia não como uma forma de registrar experiências pessoais, mas como um processo de explorar o mundo e o próprio meio. Eu preciso ser lembrado: ‘É a festa de aniversário do seu filho. Leve uma câmera.’ E então, quando eu estou lá, ‘Tire uma foto’, porque não me ocorre usá-la como esse instrumento de lembrança." - Stephen Shore

Stephen Shore é quase como se fosse o “Muzak” da fotografia. Suas imagens nunca exigem esforço ou explicação: são confortáveis, ordenadas, elegantes. Olhar para elas é como terminar um quebra-cabeça em que todas as peças se encaixam com precisão matemática — um sossego visual. Uncommon Places, publicado pela primeira vez em 1982 e relançado depois em edições ampliadas (2004 e 2014), é o livro que melhor cristaliza essa proposta: um inventário meticuloso dos Estados Unidos e Canadá entre 1973 e 1979, feito com câmera de grande formato, olhos atentos e uma calma que parece de outro século.

Apesar do aparente vazio, essas não são “fotos de nada” — cada imagem é construída com elegância milimétrica, mesmo quando mostra lanchonetes vazias, fios elétricos, placas comerciais ou estacionamentos desertos. Shore não busca o inusitado, mas sim o evidente que ninguém repara. Ele fotografa o mundo como ele é, no momento exato antes de se tornar obsoleto. As cenas, embora banais, são carregadas de um peso silencioso: têm clima, têm estrutura, têm tempo acumulado.

Shore registrava uma cultura em transição — um país que trocava calçadas por estacionamentos, fachadas ornamentadas por letreiros genéricos, e o encontro espontâneo da rua pela privacidade padronizada do carro. Cada imagem é um documento involuntário de um mundo que estava se reorganizando em silêncio, bloco por bloco, poste por poste.

E ao contrário de tantos fotógrafos que procuram a atemporalidade, Shore fez o oposto: fixou seu tempo com precisão quase arqueológica. Os modelos de carro, os tons de tinta desbotada, as vitrines e cardápios são específicos demais para serem ignorados. Ele criou um atlas emocional dos anos 1970. E hoje, ao folhear o livro, percebemos imediatamente tudo o que já se perdeu — e, talvez mais forte ainda, tudo que nunca mais será exatamente assim.

O BOM

É um livrão no melhor sentido: grande, pesado, bonito. A câmera de grande formato usada por Shore oferece uma riqueza de detalhes que enche os olhos e faz as fotos parecerem quase tridimensionais. A composição é sempre impecável — cada poste, cada sombra, cada pedaço de céu está no lugar certo. As legendas com local e data ajudam a ancorar cada imagem no tempo e no espaço, o que reforça essa qualidade de documento visual de uma América em mutação. Os carros antigos e as placas de comércio são um deleite à parte.

O RUIM

Apesar da força visual, a edição poderia ter sido feita em ordem cronológica. Isso ajudaria a acompanhar melhor o percurso das viagens e a evolução do olhar de Shore ao longo dos anos. Além disso, algumas imagens parecem quase desnecessárias — repetitivas ou simplesmente desagradáveis. Não dá para fingir que certas fotos de privadas sujas ou restos de comida tenham o mesmo apelo das paisagens urbanas mais icônicas.

O BONITO

O silêncio das imagens. A forma como Shore captura o espírito do lugar e da época sem dramatizar. As fotos internas são kitsch na medida certa — papéis de parede floridos, estofados duvidosos, cortinas desbotadas. E os retratos que ele fez ao longo do caminho (amigos, conhecidos, figuras locais) são adoráveis, atemporais e cheios de presença.

O FEIO

Shore não tenta esconder o que é feio. Muito pelo contrário — ele fotografa sem filtros, sem “photoshop sentimental”. Tem sujeira, tem acúmulo, tem cenas sem nenhum glamour. A feiura é mostrada com a mesma calma estética das demais imagens. Isso pode ser um problema para leitores mais sensíveis, mas também é parte da honestidade do projeto: o mundo não se embeleza só porque foi fotografado.

VEREDITO FINAL: VALE A PENA?

Vale — e muito. Uncommon Places é um daqueles livros que qualquer pessoa interessada em fotografia precisa conhecer, folhear e revisitar com frequência. É desafiador? Sim. É monótono às vezes? Também. Mas a clareza compositiva, a precisão histórica e a coerência estética fazem deste um clássico incontornável. É um livro que ensina, silenciosamente, a olhar para as coisas com mais calma — e talvez até com mais afeto.



Wednesday, July 2, 2025

HARRY GRUYAERT

 

“Para mim, a fotografia não é só uma questão de composição ou cor — ela também precisa falar de lugar e de tempo.” - Harry Gruyaert

Nascido em 1941,  Harry Gruyaert cresceu na Bélgica do pós-guerra, num ambiente onde a fotografia parecia coisa fútil demais para ser levada a sério. Filho de um engenheiro tradicionalista, encontrou no cinema uma primeira saída sensorial — e foi por aí que começou. Estudou cinema e fotografia em Bruxelas, mas foi em Paris, nos anos 1960, que seu olhar encontrou um propósito definitivo: capturar o mundo pela cor.

Numa época em que o preto e branco ainda era considerado o idioma legítimo da fotografia documental — especialmente dentro da Magnum —, Gruyaert seguiu por outra estrada. Inspirado pelos usos experimentais da cor já adotados por nomes como Gordon Parks, Saul Leiter e Fred Herzog, e atento à guinada que acontecia nos Estados Unidos com William Eggleston, Joel Meyerowitz e Stephen Shore, ele começou a fotografar o cotidiano com filme colorido, recusando qualquer nostalgia monocromática.

Enquanto Henri Cartier-Bresson torcia o nariz para o uso do flash e da cor, temendo que a estética comercial diluísse a potência da fotografia, Gruyaert abraçava essa linguagem como uma forma de atenção plena. Para ele, a cor não era adorno — era estrutura. E mais que isso: era o próprio sujeito da imagem.

Nos anos 1970, com a cor finalmente ganhando espaço em editoriais e revistas, a ousadia de Gruyaert começava a fazer sentido. Em 1982, foi oficialmente convidado a integrar a Magnum, tornando-se um dos primeiros membros da agência a trabalhar exclusivamente com fotografia colorida.

Principais projetos: uma paleta global

Morocco
Um dos trabalhos mais marcantes de Gruyaert, o ensaio sobre o Marrocos começou em 1969 e se estendeu por mais de quatro décadas. Fascinado pela luz, pelas texturas e pela intensidade cromática do país, ele percorreu o deserto, o Haut Atlas e as medinas com um olhar sensível à atmosfera — mais interessado em captar o silêncio das formas do que em contar histórias óbvias. Morocco foi publicado pela primeira vez em 1990 e relançado em 2024, consolidando-se como uma das obras mais importantes da fotografia documental em cor.

India
Outro capítulo essencial. Em vez de recorrer ao exotismo fácil, Gruyaert mergulha nas contradições da Índia com um olhar contemplativo e sofisticado. A vida urbana, os rituais religiosos, os espaços públicos e íntimos — tudo é retratado com a mesma reverência cromática, em imagens que parecem carregadas de calor, poeira e som.

TV Shots
No final dos anos 1960, vivendo em Londres, Gruyaert começou a fotografar a tela da televisão. A motivação? Um incômodo com o poder de manipulação das imagens televisivas — ele queria retratar a Inglaterra por meio daquilo que ela transmitia de si mesma. O resultado são imagens densas, fragmentadas, às vezes absurdas, que parecem pré-instagramáveis na sua estética glitch. Um comentário precoce sobre o bombardeio visual que ainda estava por vir.

Made in Belgium (1973–1980)

Antes mesmo de ingressar na Magnum, Gruyaert passou por uma profunda investigação visual na Bélgica – país que considerava “vazio de aprendizado”, mas que começou a ver com outros olhos após o impacto do Pop Art e suas viagens. Primeiro em preto e branco, depois transitando para a cor, ele mergulhou em cidades, festivais e cenas cotidianas locais, usando a saturação suave para revelar uma dimensão poética e até humorística nos lugares mais familiares. O livro resultante, Made in Belgium, e sobretudo Roots (posterior), mostram esse processo de reconciliação com o olhar doméstico, um estudo de identidade e pertencimento antes do reconhecimento internacional.

Tour de France
Talvez o projeto mais surpreendente de seu portfólio. Gruyaert fotografa o evento esportivo mais famoso da França, mas em vez de capturar os atletas em ação, volta seu olhar para os bastidores, para a espera, para a multidão anônima, para os momentos “entre” — revelando a coreografia silenciosa que sustenta o espetáculo.

Irish Summers
Nos anos 1980, Gruyaert cruzou a Irlanda a bordo de uma Kombi camper, num projeto que é tanto uma viagem pessoal quanto uma documentação do país. O resultado são imagens suaves, de paisagens melancólicas, tons esmaecidos e gestos cotidianos — um verão lento e íntimo em verde-claro e céu cinzento.

Rivages
Um dos trabalhos mais poéticos da carreira, este livro reúne fotografias de litorais e margens ao redor do mundo. Mais do que paisagens, são estados de espírito: o mar aparece como linha de fuga, ponto de interrogação, respiro visual.

Last Call
Nesse ensaio, Gruyaert volta seu olhar para os aeroportos — aqueles espaços de transição onde luz, arquitetura e gente se encontram em um teatro cotidiano. Reunindo imagens de quase 40 anos (entre 1982 e 2019), Last Call revela sua obsessão pela compor luz, transparência e reflexos, além da “teatralidade humana” dos viajantes suspensos entre partidas e chegadas. O resultado é uma série contemplativa, onde o passageiro solitário lendo, o corredor vazio, o balcão de check-in formam pequenas performances visuais — menos sobre a pressa de viajar, mais sobre a pausa entre movimentos . Publicado pela Thames & Hudson em 2020, Last Call traz o rigor gráfico e a elegância cromática que são marcas registradas do trabalho de Gruyaert.

Gruyaert é frequentemente descrito como um fotógrafo “cândido”, mas isso seria simplificar demais. Ele se aproxima do mundo com delicadeza, sim — mas também com uma precisão coreográfica. Suas imagens nunca são improvisadas: elas estão sempre prestes a desmoronar ou a se completar, como se o acaso tivesse aprendido a compor.

Com a chegada da era digital, Gruyaert não hesitou em se adaptar. Adotou o novo processo justamente pelo controle que poderia ter sobre a impressão — e, sobretudo, sobre a cor. Porque para ele, a fotografia é isso: uma forma de traduzir o mundo pela vibração da luz.

Com sua obra, Harry Gruyaert ampliou o território do que chamamos de “fotografia documental”. Mostrou que a cor pode ser tão comprometida com a realidade quanto o preto e branco, desde que saibamos o que estamos procurando. Ou melhor: desde que saibamos ver.


VÍDEOS INTERESSANTES:

  • Uma viagem em 1969 mudou a fotografia colorida com filme para sempre // Harry Gruyaert (Developing Tank):

  • Irish Summers:



LINKS INTERESSANTES: