Stephen Shore é quase como se fosse o “Muzak” da fotografia. Suas imagens nunca exigem esforço ou explicação: são confortáveis, ordenadas, elegantes. Olhar para elas é como terminar um quebra-cabeça em que todas as peças se encaixam com precisão matemática — um sossego visual. Uncommon Places, publicado pela primeira vez em 1982 e relançado depois em edições ampliadas (2004 e 2014), é o livro que melhor cristaliza essa proposta: um inventário meticuloso dos Estados Unidos e Canadá entre 1973 e 1979, feito com câmera de grande formato, olhos atentos e uma calma que parece de outro século.
Apesar do aparente vazio, essas não são “fotos de nada” — cada imagem é construída com elegância milimétrica, mesmo quando mostra lanchonetes vazias, fios elétricos, placas comerciais ou estacionamentos desertos. Shore não busca o inusitado, mas sim o evidente que ninguém repara. Ele fotografa o mundo como ele é, no momento exato antes de se tornar obsoleto. As cenas, embora banais, são carregadas de um peso silencioso: têm clima, têm estrutura, têm tempo acumulado.
Shore registrava uma cultura em transição — um país que trocava calçadas por estacionamentos, fachadas ornamentadas por letreiros genéricos, e o encontro espontâneo da rua pela privacidade padronizada do carro. Cada imagem é um documento involuntário de um mundo que estava se reorganizando em silêncio, bloco por bloco, poste por poste.
E ao contrário de tantos fotógrafos que procuram a atemporalidade, Shore fez o oposto: fixou seu tempo com precisão quase arqueológica. Os modelos de carro, os tons de tinta desbotada, as vitrines e cardápios são específicos demais para serem ignorados. Ele criou um atlas emocional dos anos 1970. E hoje, ao folhear o livro, percebemos imediatamente tudo o que já se perdeu — e, talvez mais forte ainda, tudo que nunca mais será exatamente assim.
O BOM
É um livrão no melhor sentido: grande, pesado, bonito. A
câmera de grande formato usada por Shore oferece uma riqueza de detalhes que
enche os olhos e faz as fotos parecerem quase tridimensionais. A composição é
sempre impecável — cada poste, cada sombra, cada pedaço de céu está no lugar
certo. As legendas com local e data ajudam a ancorar cada imagem no tempo e no
espaço, o que reforça essa qualidade de documento visual de uma América em
mutação. Os carros antigos e as placas de comércio são um deleite à parte.
O RUIM
Apesar da força visual, a edição poderia ter sido feita em
ordem cronológica. Isso ajudaria a acompanhar melhor o percurso das viagens e a
evolução do olhar de Shore ao longo dos anos. Além disso, algumas imagens
parecem quase desnecessárias — repetitivas ou simplesmente desagradáveis. Não
dá para fingir que certas fotos de privadas sujas ou restos de comida tenham o
mesmo apelo das paisagens urbanas mais icônicas.
O BONITO
O silêncio das imagens. A forma como Shore captura o
espírito do lugar e da época sem dramatizar. As fotos internas são kitsch na
medida certa — papéis de parede floridos, estofados duvidosos, cortinas
desbotadas. E os retratos que ele fez ao longo do caminho (amigos, conhecidos,
figuras locais) são adoráveis, atemporais e cheios de presença.
O FEIO
Shore não tenta esconder o que é feio. Muito pelo contrário
— ele fotografa sem filtros, sem “photoshop sentimental”. Tem sujeira, tem
acúmulo, tem cenas sem nenhum glamour. A feiura é mostrada com a mesma calma
estética das demais imagens. Isso pode ser um problema para leitores mais
sensíveis, mas também é parte da honestidade do projeto: o mundo não se
embeleza só porque foi fotografado.
VEREDITO FINAL: VALE A PENA?
Vale — e muito. Uncommon Places é um daqueles livros
que qualquer pessoa interessada em fotografia precisa conhecer, folhear e
revisitar com frequência. É desafiador? Sim. É monótono às vezes? Também. Mas a
clareza compositiva, a precisão histórica e a coerência estética fazem deste um
clássico incontornável. É um livro que ensina, silenciosamente, a olhar para as
coisas com mais calma — e talvez até com mais afeto.