Nascido em 12 de fevereiro de 1857, na cidade portuária de Libourne, na França, Eugène Atget teve uma trajetória singular, marcada por transições silenciosas e por uma obstinada dedicação a um projeto pessoal que, à sua época, passou quase despercebido. Antes de se tornar o nome fundamental que é hoje na história da fotografia, Atget teve uma breve incursão pelo teatro. Foi ator fracassado antes de ser fotógrafo — ironia do destino para alguém que viria a registrar, com uma precisão quase teatral, os cenários mais íntimos e efêmeros de Paris.
Atget começou a fotografar por volta de 1890. Em uma Paris
que se modernizava rapidamente, ele voltou seu olhar para aquilo que estava
desaparecendo. As transformações urbanísticas iniciadas por Haussmann décadas
antes haviam redesenhado a cidade, e as últimas décadas do século XIX seguiram
esse ímpeto de modernização. Atget, no entanto, escolheu olhar para o que
ficava para trás — fachadas antigas, ruas esquecidas, interiores decadentes,
vitrines de lojas, escadarias, portas, pátios sombreados. Seu trabalho se
tornou uma espécie de inventário poético de uma Paris em vias de extinção.
É verdade — e fundamental — que Atget via sua prática como
documental. Ele mesmo anunciava seus serviços como fornecedor de “documentos
para artistas”. Suas fotografias eram compradas por pintores, cenógrafos,
arquitetos e artesãos que as usavam como referência visual. Mas ao contrário do
que a função prática sugeria, o que vemos em seu acervo — composto por mais de
8 mil imagens — é mais do que simples registro. Há uma inquietação lírica, uma
sensibilidade silenciosa, uma forma de ver que transforma documentação em arte.
E é justamente essa ambiguidade entre documento e poesia que o torna tão
influente até hoje.
Apesar de frequentemente chamado de “o primeiro fotógrafo de
rua”, esse título precisa de alguma nuance. Atget não fotografava o movimento
urbano no sentido moderno — suas imagens não capturam a agitação das multidões
ou os fluxos da vida cotidiana, como farão mais tarde Cartier-Bresson ou Garry
Winogrand. Pelo contrário: há uma estranha ausência de pessoas em suas
fotografias, ou então figuras fantasmáticas, borradas por longas exposições.
Ele não documentava o presente imediato, mas antes o vestígio, a memória, o que
está prestes a desaparecer. Nesse sentido, é mais justo dizer que Atget foi um
cronista visual da cidade em transformação — um arqueólogo da modernidade,
fotografando não o novo, mas o que o novo ameaçava apagar.
Seu trabalho só ganhou verdadeira notoriedade após sua
morte, em 1927, quando foi descoberto e promovido pelos surrealistas,
especialmente Man Ray e Berenice Abbott. Para os surrealistas, havia algo de
profundamente onírico em suas imagens. As ruas vazias, os reflexos nas
vitrines, os manequins imóveis: tudo parecia conspirar para criar uma atmosfera
de sonho, de mistério, de suspensão do tempo. Abbott, aliás, foi a grande
responsável pela preservação e difusão da obra de Atget, reconhecendo nela um
valor histórico e estético que o próprio autor raramente reivindicava para si.
Les Petits Métiers de Paris: o teatro silencioso dos ofícios esquecidos
No vasto acervo de Eugène Atget, há uma série que se destaca não apenas pelo valor documental, mas pelo poder emocional que carrega: "Les Petits Métiers de Paris" — uma coleção de retratos dos trabalhadores ambulantes e artesãos que sobreviviam à margem da modernização parisiense do fim do século XIX e início do XX.
Esses retratos são registros frontais, diretos, quase sempre realizados ao ar livre, com os sujeitos posando com suas ferramentas de trabalho ou produtos à venda: afiadores de faca, vendedores de legumes, engraxates, remendões, floristas, coletores de lixo, vendedores de carvão, de água, de brinquedos. A composição é simples, mas nunca indiferente — há uma dignidade silenciosa no modo como Atget os fotografa. Nenhuma afetação, nenhuma caricatura: apenas a presença plena de pessoas comuns que, à sua maneira, sustentavam a cidade em transformação.
Diferente do restante de sua obra, em que as figuras humanas aparecem como espectros ou estão ausentes, aqui os sujeitos são o centro da imagem. Mas mesmo assim, o sentimento de melancolia persiste. Esses retratos não têm o tom exaltado dos registros etnográficos da mesma época. São mais íntimos, mais contidos. Há uma doçura ali, um senso de respeito, talvez até uma admiração muda por essas figuras que resistem ao apagamento.
Com esses pequenos ofícios, Atget nos oferece um inventário humano do cotidiano. Ele sabia que essas figuras estavam desaparecendo tanto quanto as fachadas antigas e os pátios sombrios que ele documentava. Os pequenos comércios de rua estavam sendo suprimidos pela lógica do consumo moderno, os ambulantes desalojados pela reorganização urbana e as exigências sanitárias. Assim, fotografá-los era mais do que registrar um tipo social — era reconhecer a presença de vidas invisíveis.
Hoje, esses retratos têm um valor que transcende a documentação: são quase monumentos à modéstia. Atget não lhes oferece glamour, mas algo talvez mais raro — uma presença digna na memória visual de uma cidade. Cada imagem é um pequeno altar, uma pausa diante do esquecimento
Atget é considerado uma figura essencial para a fotografia moderna. Seu legado está na origem de vários gêneros: da fotografia urbana à documental, passando pela street photography e pela fotografia conceitual. Ele inaugurou, com seu olhar paciente e silencioso, uma nova relação entre fotografia e tempo — uma forma de ver que resiste à pressa e à obviedade. Seu trabalho não nos mostra a Paris que se tornaria cartão-postal, mas a cidade secreta, anterior à sua própria memória, que ele teve o cuidado de guardar, imagem por imagem, como quem sabe que o tempo passa — mas que a fotografia, às vezes, sabe esperar.
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