Fotografia vernacular é, em essência, a fotografia feita por pessoas comuns — ou seja, não necessariamente por fotógrafos, nem com pretensões artísticas, documentais ou jornalísticas. São imagens produzidas fora dos circuitos oficiais da arte e do fotojornalismo, muitas vezes com finalidades práticas: guardar memórias, marcar presenças, registrar acontecimentos cotidianos.
A palavra
“vernacular” vem do latim vernaculus, que significa “doméstico, nativo, comum
ao povo” — e aqui ela carrega o sentido de algo local, íntimo, feito na
linguagem do dia a dia. Pense nas fotos de álbuns de família, retratos 3x4,
formaturas, cartões-postais, registros de casamento em estúdio de bairro,
polaroids coladas na geladeira. Mas também: selfies no espelho, cliques da sua
cachorra dormindo em posições esquisitas, fotos de plantas com nomes
engraçados, do jantar de sábado com os amigos, de um aniversário no quintal.
Quando
alguém fotografa o que lhe é íntimo, com o celular mesmo, sem pensar em
estética ou curadoria — só querendo guardar aquilo — está praticando fotografia
vernacular. É uma linguagem espontânea, afetiva, e muitas vezes invisível. Mas
é também um retrato precioso da nossa cultura visual e dos modos como nos
relacionamos com a memória.
Exemplos de fotografia vernacular:
- Fotos de família e de álbuns de infância
- Polaroids e instantâneos
- Registros escolares, de batizados, casamentos, festas infantis
- Retratos de identificação (passaporte, RG, crachá)
- Selfies, fotos de pets, plantas, comidinhas, mensagens no vidro do carro
- Viagens registradas por turistas comuns, com poses clássicas e sorrisos cortados
As origens da Fotografia Vernacular
A fotografia
vernacular surgiu quase simultaneamente ao nascimento da própria fotografia, no
início do século XIX. Com a invenção do daguerreótipo por Louis Daguerre em
1839, a fotografia começou como um processo técnico complexo, acessível
principalmente a profissionais e à elite. No entanto, rapidamente, entusiastas
amadores começaram a experimentar com essa nova forma de capturar imagens,
registrando cenas do cotidiano, familiares e amigos.
Conforme a
tecnologia fotográfica evoluiu, tornando-se mais acessível e portátil,
especialmente com a introdução das câmeras Kodak no final do século XIX, a
prática da fotografia se democratizou. Pessoas comuns passaram a documentar
suas vidas diárias, criando álbuns de família, retratos de viagens, festas e
eventos locais. Essas imagens, muitas vezes despretensiosas e sem intenções
artísticas, constituem o que hoje chamamos de fotografia vernacular.
O termo
"vernacular" refere-se ao uso cotidiano e comum de uma linguagem ou
prática. Na fotografia, isso se traduz em imagens que capturam a essência da
vida diária, sem a intervenção de estéticas formais ou preocupações artísticas.
São registros feitos por e para pessoas comuns, refletindo a cultura, os
costumes e as experiências de diferentes épocas e comunidades.
Hoje,
reconhecemos o valor histórico e cultural dessas fotografias vernaculares. Elas
oferecem uma perspectiva íntima e autêntica da vida cotidiana ao longo do
tempo, servindo como testemunhos visuais de práticas sociais, modas, relações
familiares e eventos significativos que moldaram a sociedade.
Por que isso importa hoje?
Durante
muito tempo, esse tipo de imagem foi tratado como “menor” — algo sem valor
estético ou documental. Mas hoje, muitos pesquisadores e artistas olham pra
fotografia vernacular como um baú riquíssimo de história visual e cultural. Ela
mostra como as pessoas comuns viam o mundo, como queriam ser vistas e o que
consideravam importante registrar. Além disso, muitos fotógrafos contemporâneos
usam a estética vernacular como linguagem criativa.
Alguns projetos famosos de fotografia vernacular
Aqui vai uma
seleção saborosa de projetos famosos (ou cult) que usam fotografia vernacular
como ponto de partida, material bruto ou conceito central:
Erik Kessels – In Almost Every Picture
Um clássico moderno. Kessels é designer e colecionador compulsivo de fotos estranhas de álbuns de família, achadas em mercados de pulga. Vernacular com curadoria e humor. Muito humor.
Cada livro da série traz uma obsessão vernacular específica, como:
- uma mulher fotografada com o mesmo coelho de pelúcia por décadas,
- um casal na mesma pose em viagens,
- erros de laboratório que geram imagens “defeituosas” maravilhosas.
Veja mais aqui.
Thomas
Sauvin – Beijing Silvermine
Um projeto
insano: Sauvin resgatou mais de 850 mil negativos descartados de Pequim
(1990–2005) antes que fossem derretidos por conta da prata presente no filme.
O resultado é um retrato íntimo da China urbana contemporânea pré-celular, em
festas, banheiros, piscinas, casamentos e karaokês.
É vernacular
e arqueologia urbana ao mesmo tempo. Veja mais aqui.
Joachim Schmid – Pictures from the Street
Joachim é o
padrinho intelectual da ideia de “reaproveitar” fotos anônimas como arte.
Nesse projeto, ele coleta fotos encontradas nas ruas, perdidas, amassadas,
descartadas, e as organiza como se fossem um grande ensaio sobre a memória
urbana.
Ele mesmo dizia:
"No new pictures until the old ones have been used up."
Larry Sultan – Pictures from Home
Aqui a
vernacularidade vem de dentro da própria família: Sultan mistura fotos caseiras
dos pais com retratos feitos por ele, criando uma narrativa íntima e ambígua.
O trabalho é ao mesmo tempo biografia e questionamento da memória familiar
construída pela fotografia.
Veja mais aqui.
Fotografia Vernacular em museus (sim, é coisa séria!)
A foto do seu avô na 4ª série pode estar em um museu! A “vernacular photography” virou campo de estudo e curadoria. Vários museus, coleções particulares e arquivos (como o Archive of Modern Conflict) mantêm acervos inteiros dedicados a esse tipo de imagem:
- retratos de estúdio do início do século XX,
- fotos de carteirinha,
- fotografias escolares,
- postais real-photo,
- e outros registros cotidianos que antes seriam descartados ou ignorados.
Ou seja: a
tal “foto banal” está ganhando lugar na história da fotografia.
SERÁ SUA FOTOGRAFIA VERNACULAR?
Pode ser. Já
pensou nisso?
Se você
fotografa momentos do cotidiano, pessoas próximas, situações banais do dia a
dia, sem pensar em grandes conceitos ou preocupações estéticas... você já está
flertando com a fotografia vernacular. Isso vale para aquele retrato rápido do
seu pai sentado na varanda, a selfie no elevador, a mesa bagunçada do jantar de
ontem. É o tipo de foto que não está buscando aplauso — está apenas
registrando. E isso tem força.
Agora, se
você usa a estética vernacular como recurso, mesmo com intenção artística ou
autoral — aí é outra coisa. Parece vernacular, mas já virou linguagem
construída. É como alguém que se veste "simples" só pra parecer
despretensioso — já tem conceito por trás.
Como fazer fotografia vernacular?
A pergunta
certa talvez seja: como reconhecer a fotografia vernacular no que você já faz?
Não existe
técnica específica. A fotografia vernacular não se baseia em câmeras caras,
pós-produção ou composições calculadas. Ela nasce do gesto espontâneo de
registrar.
Quer
experimentar? Use a câmera que estiver à mão. Fotografe em JPEG direto da
câmera. Evite editar depois. Não pense no feed, nem no portfólio. Pense em imprimir/revelar
e guardar. Pense em mostrar pra alguém importante daqui a dez anos.
E na
prática?
Faça uma
série de imagens do seu cotidiano — com sinceridade. Pode ser com o celular ou
com a sua câmera compacta em modo automático. Tente evitar a tentação de
“melhorar” as fotos depois. Não é sobre isso.
Você pode
fazer:
- Retratos informais de quem convive com você
- Cenas da rua, do transporte, da espera
- Objetos que fazem parte da sua rotina
- Pequenos detalhes que passam batido
- Situações banais que você já nem enxerga mais
Depois,
olhe para esse conjunto como um álbum. Está aí uma fotografia sua — direta,
pessoal, despretensiosa. Possivelmente vernacular.
Se quiser
ir além, pense em materializar essas imagens.
Imprimir suas fotos — mesmo que em casa, em papel comum, coladas num caderno ou
montadas num mini-álbum — pode reforçar o caráter vernacular do trabalho. A
fotografia vernacular sempre teve uma dimensão tátil: era feita para ser
tocada, mostrada, guardada na carteira ou pendurada na parede da sala. Trazer
suas imagens para o mundo físico ajuda a enxergá-las com outro olhar. Dá peso,
contexto, permanência. Às vezes, um JPEG no rolo da câmera não te diz nada...,
mas impresso, vira memória.
LINKS INTERESSANTES
- Found Polaroids - Website do fotógrafo e pesquisador canadense Kyler Zeleny, alguém que vem escrevendo ostensivamente a respeito de fotografias encontradas, álbuns de família etc.
- Retratos Pintados - Matéria de 2010 do The New Yorker sobre a coleção de Titus Reidl de retratos pintados à mão típicos do Nordeste brasileiro. Essa coleção foi editada pelo próprio Reidl e por Martin Parr e publicada em um livro com esse nome.
- Fotolivro Imaging Everyday Life - Engagements with Vernacular Photography edited by Tina M Campt (Rafael Bosco Vieira);
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