A história da fotografia é atravessada por deslocamentos. Não apenas os das imagens, que viajam no tempo e no espaço, mas também os dos próprios fotógrafos — homens e mulheres que trocaram de país, de língua, de horizonte. Estrangeiros que, ao pisar em terras alheias, descobriram uma nova maneira de olhar. E, talvez mais importante: revelaram àqueles que ali viviam uma face inédita de sua própria realidade.
Há algo de profundamente transformador no ato de ver de
fora. O estrangeiro não tem os olhos adormecidos pelo hábito. Ele repara. Ele
estranha. Ele sente o impacto do trivial. E quando esse olhar sensível se junta
à linguagem fotográfica, o resultado costuma ser mais do que um documento — é
uma reinterpretação estética e simbólica do lugar.
A LUCIDEZ DO ESTRANHO
Fotografar um país onde não se nasceu exige escuta. É preciso atravessar o ruído cultural, desaprender automatismos, reordenar referências. Nesse processo, o estrangeiro se torna quase um antropólogo visual: observa os gestos, a arquitetura da luz, os códigos sociais. E faz disso matéria de fotografia.
Por isso, tantos nomes fundamentais na história da imagem
construíram suas obras longe de casa. André Kertész, húngaro de nascimento, só
encontrou liberdade estética nos Estados Unidos, onde sua poética das pequenas
coisas ganhou profundidade. Robert Frank, suíço, leu a América com uma
sensibilidade que nenhum americano soube igualar — The Americans é mais
uma elegia crítica do que um álbum turístico. Bill Brandt, nascido em Hamburgo,
reinventou a visualidade da Inglaterra com uma combinação de surrealismo e
crônica social. William Klein, americano radicado em Paris, devolveu a Nova
York sua própria fúria, com uma estética vibrante, agressiva, urbana. A
austríaca Inge Morath, com sua câmera e sua escuta, percorreu o Irã, a China, o
México, transformando a alteridade em empatia. Brassaï, húngaro, traduziu a
Paris noturna em imagens carregadas de sensualidade e mistério — como só um
exilado seria capaz de fazer.
O que todos eles tinham em comum não era apenas o passaporte
estrangeiro, mas a capacidade de não se acomodar ao previsível. Eles viam o que
os outros já haviam deixado de ver.
QUANDO A FOTOGRAFIA VEM DE FORA
Esse fenômeno não é exclusivo do século XX. Desde o século
XIX, fotógrafos europeus cruzaram oceanos para documentar o “Novo Mundo” —
fossem exploradores, cientistas, comerciantes ou artistas. Suas imagens, muitas
vezes atravessadas por exotismo e intenção colonial, também guardam momentos de
genuína observação estética.
Francis Frith, na Inglaterra vitoriana, buscou no Egito uma
monumentalidade visual que evocasse a eternidade. Felice Beato, italiano,
documentou guerras e a vida cotidiana na Ásia com uma ambição de registro quase
totalizante. Maxime Du Camp, ao lado de Flaubert no Oriente Médio, retornou com
fotografias que revelam tanto sobre os lugares quanto sobre o olhar europeu que
os enquadrava.
Há um paradoxo aqui: por mais enviesado que o olhar
estrangeiro possa ser, é frequentemente ele quem mostra aos nativos aquilo que
não sabiam que era belo, estranho ou relevante. O estrangeiro fotografa o óbvio
como se fosse extraordinário — e, nesse gesto, nos ensina a ver de novo.
VER COMO SE NÃO SOUBESSE
Há um aprendizado fundamental na experiência do fotógrafo
estrangeiro: o de olhar como se não soubesse. De desaprender o já visto. De
sustentar o espanto diante do que se tornou invisível pela familiaridade.
Essa postura — mais do que qualquer técnica — é o que faz a
diferença entre uma imagem protocolar e uma imagem reveladora. E ela pode ser
cultivada, mesmo sem cruzar fronteiras. O estrangeiro, afinal, é menos uma
nacionalidade do que uma atitude diante do mundo.
À BEIRA DO BRASIL
Nos próximos dias, este blog voltará os olhos para o Brasil
— país que, ao longo do século XX, foi destino de fotógrafos estrangeiros cujas
imagens hoje fazem parte do imaginário nacional. Homens e mulheres que chegaram
como forasteiros, mas souberam ver o país com uma intensidade que ultrapassa
qualquer categoria de pertencimento.
Mas, antes de mergulhar nessas histórias, é preciso fazer
essa pausa e reconhecer: o olhar estrangeiro não é apenas exótico ou curioso. É
uma lente de reconfiguração. Uma forma de devolver o mundo ao seu estado
inaugural — estranho, frágil, fascinante.
A seguir, imagens de fotógrafos citados anteriormente:
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