Publicado em 2010 pela University of Chicago Press — e que, infelizmente, nunca foi traduzido para o português nem lançado no Brasil — The Cruel Radiance: Photography and Political Violence, de Susie Linfield, tornou-se uma das mais lúcidas defesas contemporâneas da fotografia documental. Finalista do National Book Critics Circle Award na categoria Criticism e vencedor do Berlin Prize, o livro recusa a desconfiança generalizada que paira sobre imagens de sofrimento — frequentemente vistas como espetaculares, manipuladoras ou moralmente suspeitas. Para Linfield, olhar, mesmo com desconforto, pode ser uma forma de compromisso com o mundo.
Susie Linfield (1955-) é crítica cultural, ensaísta e professora da New York University, onde dirige o programa de estudos culturais. Com formação em literatura e jornalismo, escreve sobre fotografia, ética e política em veículos como The New York Times, Dissent, Aperture e The Nation. Seu pensamento busca um equilíbrio raro: intelectual, mas não hermético; político, mas não panfletário; rigoroso, mas nunca cínico.
A autora escreve contra a corrente — e sabe disso. Seu livro é, em parte, uma resposta à tradição teórica que tratou a fotografia documental com suspeita ou desprezo, especialmente a partir dos anos 1970. Linfield cita nomes como Susan Sontag, Roland Barthes e John Berger, que, sob diferentes perspectivas, difundiram a ideia de que imagens de sofrimento não apenas fracassam em gerar empatia ou mudança, como correm o risco de transformar a dor alheia em espetáculo voyeurístico. É uma crítica que se pretende ética, mas que Linfield enxerga, no fundo, como um gesto de desistência moral.
Ao contrário desses autores, Linfield acredita que as imagens documentais não apenas podem ter valor moral — elas devem. E mais: a recusa em olhar para essas imagens, argumenta, é muitas vezes uma forma de blindagem emocional travestida de lucidez crítica. Não é o excesso de empatia o problema, e sim o medo de ser afetado.
Essa escolha a coloca num terreno incômodo: ela não romantiza a fotografia de guerra, não exime fotógrafos de suas ambiguidades e tampouco idealiza o poder transformador da imagem. Reconhece que fotografias podem ser mal usadas, mal interpretadas, manipuladas. Mas, diante do horror do mundo, propõe algo simples e profundamente contracultural: que a fotografia — mesmo em sua crueldade e ambiguidade — ainda é uma forma de pensar o real.
Não se trata de redimir imagens pela emoção ou estética, mas de sustentá-las no campo do pensamento. Em vez de fugir da complexidade ética de expor a dor alheia, Linfield entra nela de olhos abertos. Ao fazer isso, devolve à fotografia documental algo que muitos teóricos haviam negado: a possibilidade de ser levada a sério, não como prova absoluta ou arte superior, mas como campo de reflexão e responsabilidade.
ENTRE O SILÊNCIO E O GRITO
Um dos méritos do livro é articular pensamento e imagem a partir de exemplos concretos. O ensaio ancora-se em casos que tornam o debate mais denso, mais humano — e inevitavelmente mais desconfortável. Logo no início, Linfield descreve uma imagem feita por Heinrich Jöst, soldado da Wehrmacht que, em 1941, visitou o gueto de Varsóvia e fotografou judeus famintos e degradados pela violência nazista. A imagem — seca, frontal, talvez até indiferente — não foi feita por compaixão, muito menos por denúncia. E ainda assim sobrevive como documento. Linfield pergunta: o que fazer com uma imagem criada por um agente do próprio mal? E mais: é possível olhá-la eticamente, mesmo sabendo quem apertou o botão?
Essa questão ressoa ao longo do livro: muitas imagens não nascem de boas intenções, mas isso não as torna automaticamente inúteis ou imorais. A questão, para Linfield, não está apenas no fotógrafo, mas na nossa disposição em olhar de forma responsável. Sua coragem intelectual está aí: não exigir pureza nem do fotógrafo, nem do espectador — mas exigir consciência e rigor.
No capítulo dedicado à China, Linfield mergulha no trabalho de Li Zhensheng, fotojornalista que registrou os horrores da Revolução Cultural sob Mao Tsé-Tung. Zhensheng trabalhou dentro do sistema — como fotógrafo oficial do regime — e, ainda assim, preservou imagens que contrariavam a propaganda: humilhações públicas, prisões arbitrárias, violência social. Essas fotografias são preciosas não por exibir compaixão, mas por testemunhar uma era em que a imagem era arma a serviço da mentira.
Ao comentar o silêncio cúmplice de tantos intelectuais ocidentais diante dos crimes do maoísmo, Linfield cita um nome emblemático: André Malraux. O escritor francês, outrora referência de engajamento político e literário, tornou-se ministro da Cultura sob De Gaulle e — como tantos de sua geração — se calou ou relativizou os horrores do comunismo chinês. Linfield lembra que Malraux, que condenara os campos nazistas, não teve o mesmo ímpeto diante das purgas e torturas de Mao. Aponta, assim, o duplo padrão de indignação de parte da esquerda intelectual — que muitas vezes só reconhece a crueldade quando vem do “inimigo ideológico”.
Ao resgatar figuras como Jöst, Zhensheng e Malraux, Linfield mostra que a fotografia é menos reflexo moral de seu autor do que campo de disputa de sentido. O valor ético de uma imagem não está apenas em quem a produziu, mas em como ela circula, é lida e sustentada com pensamento.
O OLHAR QUE PERSISTE
Ao longo do livro, Linfield propõe que uma crítica fotográfica verdadeiramente ética não nasça do nojo moralizante, mas da atenção profunda. Isso se evidencia nos capítulos sobre alguns dos fotógrafos de guerra mais reconhecidos das últimas décadas.
James Nachtwey, talvez o mais emblemático “testemunhador profissional” da dor alheia, é conhecido por imagens cuidadosamente compostas, de uma beleza que por vezes parece entrar em conflito com o conteúdo: soldados feridos, civis mutilados, crianças famintas. Linfield reconhece essa tensão — e a defende. Para ela, a estética de Nachtwey não embeleza o horror, mas nos obriga a encará-lo sem desviar. Ao contrário da crítica fácil que o acusa de estilizar a dor, Linfield vê na formalidade de suas imagens um chamado à atenção.
Já em Gilles Peress, o que interessa é a recusa em narrar o sofrimento como linha reta. Peress fotografa o caos — o luto, a raiva, a confusão da guerra. Em seus trabalhos sobre Ruanda e Bósnia, não há heróis nem mártires: há entrega ao turbilhão. Linfield valoriza essa abordagem por ser antiesquemática: Peress não explica, confronta. E é justamente por isso que suas imagens têm força política: não oferecem redenção, apenas presença.
Susan Meiselas, fotógrafa da Magnum, cobriu conflitos na América Central sem jamais apagar sua própria presença. Ao contrário do ideal do fotógrafo invisível, Meiselas se expõe, se envolve, se pergunta. Para Linfield, isso é ética rara: não a da neutralidade, mas a da autoconsciência crítica. Meiselas sabe que fotografar é também mediar — e é justamente ao não negar essa mediação que conquista autoridade.
Robert Capa, mito do fotojornalismo de guerra moderno, surge como elo entre o romantismo da guerra e seu colapso moral. Linfield trata Capa com ambivalência: reconhece heroísmo e importância histórica, mas não poupa as ambiguidades de seu estilo por vezes sedutor demais. Ainda assim, insiste que seu legado — estar lá, se arriscar, acreditar que a imagem pode fazer diferença — não deve ser descartado com cinismo. Mesmo que suas fotos não tenham mudado o mundo, carregam a esperança teimosa de que ver ainda importa.
Mas nem sempre as imagens de violência nascem das mãos de fotógrafos profissionais. Linfield lembra o caso das fotografias de Abu Ghraib, feitas pelos próprios soldados norte-americanos que torturavam e humilhavam prisioneiros iraquianos. Ao contrário das imagens de Nachtwey, Peress, Meiselas ou Capa, essas não pretendiam testemunhar nem denunciar: eram souvenirs de crueldade, registros privados de uma violência praticada com naturalidade. E, no entanto, elas se tornaram documentos centrais para a compreensão daquele episódio. Para Linfield, o dilema de Abu Ghraib expõe o ponto mais desconfortável de sua defesa da fotografia: mesmo imagens nascidas da brutalidade e da vergonha podem — e talvez devam — ser olhadas. Negá-las não as apaga; apenas nos priva de enfrentar o que revelam sobre nós mesmos.
CONTRA O VAZIO MORAL
Ao final de The Cruel Radiance, o que permanece não é apenas um argumento, mas uma exigência: que tomemos a fotografia a sério — não como arte decorativa nem como documento puro, mas como forma de pensamento. Contra o ceticismo generalizado e o olhar cínico que vê nas imagens de sofrimento apenas consumo moral ou espetáculo, Linfield propõe algo mais difícil: olhar com responsabilidade, sem nos poupar.
Não é um chamado à fé na fotografia, mas à lucidez: ver implica escolher, julgar, responder. Virar o rosto não nos absolve. Se há algo de cruel na radiância dessas imagens, é porque o mundo que elas expõem já o é — e negá-las não o torna menos violento, apenas mais silencioso.
Em tempos de imagem banalizada, descartada ou distorcida, Linfield insiste que ainda podemos — e devemos — exigir dela alguma verdade. Uma verdade instável, talvez, mas real o bastante para nos desestabilizar. Ela nos convida, enfim, a permanecer diante da dor dos outros não para nos sentirmos virtuosos, mas para reconhecer o quanto estamos implicados — como cidadãos, espectadores, parte da história.
Pensar com imagens é também uma forma de não esquecer. E é nesse não esquecimento, imperfeito e incômodo, que ainda pode haver um resíduo de dignidade.

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