“Para mim, a fotografia não é só uma questão de composição ou cor — ela também precisa falar de lugar e de tempo.” - — Harry Gruyaert
Nascido em 1941, Harry Gruyaert cresceu na Bélgica do pós-guerra, num ambiente onde a fotografia parecia coisa fútil demais para ser levada a sério. Filho de um engenheiro tradicionalista, encontrou no cinema uma primeira saída sensorial — e foi por aí que começou. Estudou cinema e fotografia em Bruxelas, mas foi em Paris, nos anos 1960, que seu olhar encontrou um propósito definitivo: capturar o mundo pela cor.
Numa época em que o preto e branco ainda era considerado o
idioma legítimo da fotografia documental — especialmente dentro da Magnum —,
Gruyaert seguiu por outra estrada. Inspirado pelos usos experimentais da cor já
adotados por nomes como Gordon Parks, Saul Leiter e Fred Herzog, e atento à
guinada que acontecia nos Estados Unidos com William Eggleston, Joel Meyerowitz
e Stephen Shore, ele começou a fotografar o cotidiano com filme colorido,
recusando qualquer nostalgia monocromática.
Enquanto Henri Cartier-Bresson torcia o nariz para o uso do
flash e da cor, temendo que a estética comercial diluísse a potência da
fotografia, Gruyaert abraçava essa linguagem como uma forma de atenção plena.
Para ele, a cor não era adorno — era estrutura. E mais que isso: era o próprio
sujeito da imagem.
Nos anos 1970, com a cor finalmente ganhando espaço em
editoriais e revistas, a ousadia de Gruyaert começava a fazer sentido. Em 1982,
foi oficialmente convidado a integrar a Magnum, tornando-se um dos primeiros
membros da agência a trabalhar exclusivamente com fotografia colorida.
Principais
projetos: uma paleta global
Morocco
Um dos trabalhos mais marcantes de Gruyaert, o ensaio sobre o
Marrocos começou em 1969 e se estendeu por mais de quatro décadas. Fascinado
pela luz, pelas texturas e pela intensidade cromática do país, ele percorreu o
deserto, o Haut Atlas e as medinas com um olhar sensível à atmosfera — mais
interessado em captar o silêncio das formas do que em contar histórias óbvias. Morocco
foi publicado pela primeira vez em 1990 e relançado em 2024, consolidando-se
como uma das obras mais importantes da fotografia documental em cor.
India
Outro capítulo essencial. Em vez de recorrer ao exotismo fácil, Gruyaert
mergulha nas contradições da Índia com um olhar contemplativo e sofisticado. A
vida urbana, os rituais religiosos, os espaços públicos e íntimos — tudo é
retratado com a mesma reverência cromática, em imagens que parecem carregadas
de calor, poeira e som.
TV Shots
No final dos anos 1960, vivendo em Londres, Gruyaert começou a fotografar a
tela da televisão. A motivação? Um incômodo com o poder de manipulação das
imagens televisivas — ele queria retratar a Inglaterra por meio daquilo que ela
transmitia de si mesma. O resultado são imagens densas, fragmentadas, às vezes
absurdas, que parecem pré-instagramáveis na sua estética glitch. Um comentário
precoce sobre o bombardeio visual que ainda estava por vir.
Made in Belgium
(1973–1980)
Antes mesmo de ingressar na Magnum, Gruyaert passou por uma
profunda investigação visual na Bélgica – país que considerava “vazio de
aprendizado”, mas que começou a ver com outros olhos após o impacto do Pop
Art e suas viagens. Primeiro em preto e branco, depois transitando para a
cor, ele mergulhou em cidades, festivais e cenas cotidianas locais, usando a
saturação suave para revelar uma dimensão poética e até humorística nos lugares
mais familiares. O livro resultante, Made in Belgium, e sobretudo Roots
(posterior), mostram esse processo de reconciliação com o olhar doméstico, um
estudo de identidade e pertencimento antes do reconhecimento internacional.
Tour de France
Talvez o projeto mais surpreendente de seu portfólio. Gruyaert fotografa o evento esportivo mais famoso da França, mas em vez de capturar os atletas em ação, volta seu olhar para os bastidores, para a espera, para a multidão anônima, para os momentos “entre” — revelando a coreografia silenciosa que sustenta o espetáculo.
Irish Summers
Nos anos 1980, Gruyaert cruzou a Irlanda a bordo de uma Kombi
camper, num projeto que é tanto uma viagem pessoal quanto uma documentação do
país. O resultado são imagens suaves, de paisagens melancólicas, tons
esmaecidos e gestos cotidianos — um verão lento e íntimo em verde-claro e céu
cinzento.
Rivages
Um dos trabalhos mais poéticos da carreira, este livro reúne
fotografias de litorais e margens ao redor do mundo. Mais do que paisagens, são
estados de espírito: o mar aparece como linha de fuga, ponto de interrogação,
respiro visual.
Last Call
Nesse ensaio, Gruyaert volta seu olhar para os aeroportos — aqueles espaços de
transição onde luz, arquitetura e gente se encontram em um teatro cotidiano.
Reunindo imagens de quase 40 anos (entre 1982 e 2019), Last Call revela
sua obsessão pela compor luz, transparência e reflexos, além da “teatralidade
humana” dos viajantes suspensos entre partidas e chegadas. O resultado é uma
série contemplativa, onde o passageiro solitário lendo, o corredor vazio, o
balcão de check-in formam pequenas performances visuais — menos sobre a pressa
de viajar, mais sobre a pausa entre movimentos . Publicado pela Thames &
Hudson em 2020, Last Call traz o rigor gráfico e a elegância cromática
que são marcas registradas do trabalho de Gruyaert.
Gruyaert é frequentemente descrito como um fotógrafo
“cândido”, mas isso seria simplificar demais. Ele se aproxima do mundo com
delicadeza, sim — mas também com uma precisão coreográfica. Suas imagens nunca
são improvisadas: elas estão sempre prestes a desmoronar ou a se completar,
como se o acaso tivesse aprendido a compor.
Com a chegada da era digital, Gruyaert não hesitou em se
adaptar. Adotou o novo processo justamente pelo controle que poderia ter sobre
a impressão — e, sobretudo, sobre a cor. Porque para ele, a fotografia é isso:
uma forma de traduzir o mundo pela vibração da luz.
Com sua obra, Harry Gruyaert ampliou o território do que
chamamos de “fotografia documental”. Mostrou que a cor pode ser tão
comprometida com a realidade quanto o preto e branco, desde que saibamos o que
estamos procurando. Ou melhor: desde que saibamos ver.
VÍDEOS INTERESSANTES:
- Uma viagem em 1969 mudou a fotografia colorida com filme para sempre // Harry Gruyaert (Developing Tank):
- Irish Summers:
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