"Sei que o artista deve procurar o caminho mais difícil, pois nele ele tenta encontrar sua própria verdade."- Mario Cravo Neto
Filho do escultor Mario Cravo Júnior e nascido em Salvador
em 1947, Mario Cravo Neto parecia destinado a atravessar a vida com os pés
fincados no chão da arte. Mas o que ele fez com isso foi muito além da herança
familiar: criou um universo próprio onde o corpo humano, os símbolos religiosos
e a luz desenhada em preto e branco se misturam como se saíssem de um mesmo
feitiço.
Sua fotografia é muitas vezes classificada como
"espiritual", mas não no sentido esotérico ou escapista — é uma
espiritualidade suada, corporal, cheia de peso e silêncio. Ele fotografava com
uma força quase ritual, construindo imagens que parecem emergir de um lugar
sagrado (ou assombrado).
Cravo Neto é especialmente conhecido por suas séries em
preto e branco feitas com luz natural no estúdio, quase sempre com personagens
ligados ao candomblé — religião que ele tratava com um respeito profundo, mas
sem didatismo. Era o contrário da ilustração documental: ele oferecia mistério.
Um orixá de prata em fundo escuro, uma mão segurando uma caveira, um corpo
coberto por uma cobra viva — imagens assim não explicam nada. Mas evocam tudo.
Do ferro à
fotografia: o início de tudo
Antes de se render à fotografia, Mario Cravo Neto foi
moldado pela escultura. Literalmente. Filho de um dos grandes nomes do
modernismo brasileiro, cresceu entre ferramentas e formas. Estudou escultura em
Salvador e depois em Nova York, onde viveu nos anos 1960 e teve contato com a
cena artística efervescente do período. Ali também começou a se aproximar da
fotografia, e foi nesse contexto que suas referências começaram a se expandir.
Em entrevistas, apontou Pierre Verger e Robert Witkin como
influências importantes. Verger, com sua abordagem respeitosa e íntima das
religiões afro-brasileiras, certamente ajudou a moldar o olhar de Cravo Neto
para o candomblé — não como tema exótico, mas como universo espiritual e
simbólico. Já Witkin, sociólogo da arte, traz uma perspectiva mais teórica
sobre o papel da arte na cultura, algo que ecoa na forma como Cravo Neto
construiu sua obra como linguagem ritual.
Mesmo nas fotos mais simples, há algo de construção: o uso
do espaço, a modelagem da luz sobre a pele, a composição que transforma o corpo
em um objeto sagrado. A fotografia dele não documenta — ela esculpe em sombra e
carne.
A Bahia mítica:
cenário e espírito
Para ele, a Bahia não era só um lugar — era um estado de
espírito. Salvador aparece em suas fotos como uma extensão da espiritualidade
afro-brasileira, um território onde o sagrado e o cotidiano convivem em
silêncio, como vizinhos de porta. Suas imagens não tentam "explicar"
a cultura baiana; elas a absorvem.
Em vez de recorrer à iconografia folclórica ou a
representações exóticas, ele criava cenas intensas, introspectivas, com uma
beleza crua. Muitos de seus modelos eram pessoas próximas, membros de
terreiros, amigos, vizinhos. A relação de confiança com quem ele fotografava
era parte essencial do processo. Era preciso intimidade para que o mistério
pudesse emergir.
A luz e a sombra
como matéria
As fotos de Cravo Neto são profundamente táteis. A textura
da pele, a brancura do pó de pemba, o brilho opaco das contas de um colar —
tudo é captado com uma nitidez quase espiritual. E tudo isso graças à luz, sua
principal aliada.
Ele trabalhava quase sempre com luz natural, em estúdio. A
maneira como iluminava seus modelos cria uma atmosfera suspensa, entre o mundo
visível e o invisível. A sombra não é falta de luz — é uma presença densa, que
carrega significados próprios. Em vez de eliminar o mistério, ele o ampliava.
Fotografia como
rito
Para Cravo Neto, fotografar era quase um ato litúrgico. Suas
imagens não são espontâneas nem cínicas — são cuidadosas, deliberadas,
construídas como altares. Cada detalhe parece ter sido colocado ali com uma
intenção que vai além da estética: há um impulso ritualístico em sua maneira de
fotografar.
Mesmo quando lidava com temas difíceis — a dor, a morte, o
corpo vulnerável —, havia sempre uma busca por transcendência. Não no sentido
de escapar da realidade, mas de mergulhar nela com profundidade simbólica.
Reconhecimento e
legado
Mario Cravo Neto morreu em 2009, mas deixou uma obra que
continua reverberando no Brasil e no mundo. Expôs nos principais museus do
planeta, incluindo o MoMA e a Bienal de Veneza. Seu livro mais conhecido, Laroyê,
é quase um tratado visual sobre o sagrado e o profano — ou sobre como, muitas
vezes, os dois são a mesma coisa.
Seu legado vai além das imagens. Ele abriu espaço para uma
fotografia brasileira mais introspectiva, mais espiritual, mais corajosa na
forma como lida com o corpo e a fé. E fez isso sem jamais cair no exotismo ou
na estereotipia.
VÍDEOS INTERESSANTES
- Diálogos Fotográficos: O universo criativo de Mario Cravo Neto:
- Christian Cravo | Mario Cravo Neto: Espíritos sem nome:
- Mario Cravo Neto por Lui Camillo Osorio:
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