Tuesday, April 29, 2025

MARIO CRAVO NETO

 

"Sei que o artista deve procurar o caminho mais difícil, pois nele ele tenta encontrar sua própria verdade."- Mario Cravo Neto

Filho do escultor Mario Cravo Júnior e nascido em Salvador em 1947, Mario Cravo Neto parecia destinado a atravessar a vida com os pés fincados no chão da arte. Mas o que ele fez com isso foi muito além da herança familiar: criou um universo próprio onde o corpo humano, os símbolos religiosos e a luz desenhada em preto e branco se misturam como se saíssem de um mesmo feitiço.

Sua fotografia é muitas vezes classificada como "espiritual", mas não no sentido esotérico ou escapista — é uma espiritualidade suada, corporal, cheia de peso e silêncio. Ele fotografava com uma força quase ritual, construindo imagens que parecem emergir de um lugar sagrado (ou assombrado).

Cravo Neto é especialmente conhecido por suas séries em preto e branco feitas com luz natural no estúdio, quase sempre com personagens ligados ao candomblé — religião que ele tratava com um respeito profundo, mas sem didatismo. Era o contrário da ilustração documental: ele oferecia mistério. Um orixá de prata em fundo escuro, uma mão segurando uma caveira, um corpo coberto por uma cobra viva — imagens assim não explicam nada. Mas evocam tudo.

Do ferro à fotografia: o início de tudo

Antes de se render à fotografia, Mario Cravo Neto foi moldado pela escultura. Literalmente. Filho de um dos grandes nomes do modernismo brasileiro, cresceu entre ferramentas e formas. Estudou escultura em Salvador e depois em Nova York, onde viveu nos anos 1960 e teve contato com a cena artística efervescente do período. Ali também começou a se aproximar da fotografia, e foi nesse contexto que suas referências começaram a se expandir.

Em entrevistas, apontou Pierre Verger e Robert Witkin como influências importantes. Verger, com sua abordagem respeitosa e íntima das religiões afro-brasileiras, certamente ajudou a moldar o olhar de Cravo Neto para o candomblé — não como tema exótico, mas como universo espiritual e simbólico. Já Witkin, sociólogo da arte, traz uma perspectiva mais teórica sobre o papel da arte na cultura, algo que ecoa na forma como Cravo Neto construiu sua obra como linguagem ritual.

Mesmo nas fotos mais simples, há algo de construção: o uso do espaço, a modelagem da luz sobre a pele, a composição que transforma o corpo em um objeto sagrado. A fotografia dele não documenta — ela esculpe em sombra e carne.

A Bahia mítica: cenário e espírito

Para ele, a Bahia não era só um lugar — era um estado de espírito. Salvador aparece em suas fotos como uma extensão da espiritualidade afro-brasileira, um território onde o sagrado e o cotidiano convivem em silêncio, como vizinhos de porta. Suas imagens não tentam "explicar" a cultura baiana; elas a absorvem.

Em vez de recorrer à iconografia folclórica ou a representações exóticas, ele criava cenas intensas, introspectivas, com uma beleza crua. Muitos de seus modelos eram pessoas próximas, membros de terreiros, amigos, vizinhos. A relação de confiança com quem ele fotografava era parte essencial do processo. Era preciso intimidade para que o mistério pudesse emergir.

A luz e a sombra como matéria

As fotos de Cravo Neto são profundamente táteis. A textura da pele, a brancura do pó de pemba, o brilho opaco das contas de um colar — tudo é captado com uma nitidez quase espiritual. E tudo isso graças à luz, sua principal aliada.

Ele trabalhava quase sempre com luz natural, em estúdio. A maneira como iluminava seus modelos cria uma atmosfera suspensa, entre o mundo visível e o invisível. A sombra não é falta de luz — é uma presença densa, que carrega significados próprios. Em vez de eliminar o mistério, ele o ampliava.

Fotografia como rito

Para Cravo Neto, fotografar era quase um ato litúrgico. Suas imagens não são espontâneas nem cínicas — são cuidadosas, deliberadas, construídas como altares. Cada detalhe parece ter sido colocado ali com uma intenção que vai além da estética: há um impulso ritualístico em sua maneira de fotografar.

Mesmo quando lidava com temas difíceis — a dor, a morte, o corpo vulnerável —, havia sempre uma busca por transcendência. Não no sentido de escapar da realidade, mas de mergulhar nela com profundidade simbólica.

Reconhecimento e legado

Mario Cravo Neto morreu em 2009, mas deixou uma obra que continua reverberando no Brasil e no mundo. Expôs nos principais museus do planeta, incluindo o MoMA e a Bienal de Veneza. Seu livro mais conhecido, Laroyê, é quase um tratado visual sobre o sagrado e o profano — ou sobre como, muitas vezes, os dois são a mesma coisa.

Seu legado vai além das imagens. Ele abriu espaço para uma fotografia brasileira mais introspectiva, mais espiritual, mais corajosa na forma como lida com o corpo e a fé. E fez isso sem jamais cair no exotismo ou na estereotipia.


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