"Acho que há coisas mais importantes na vida do que saber o nome de um fotógrafo." - Saul Leiter
Saul Leiter talvez não fosse exatamente um entusiasta da
fama. Ao contrário da maioria dos grandes nomes da fotografia do século XX, ele
passou boa parte da vida evitando os holofotes. Trabalhou, fotografou, pintou —
e guardou. Enquanto os movimentos artísticos se atropelavam lá fora, ele se
refugiava nas ruas molhadas de Nova York, no silêncio dos reflexos, na
intimidade de cenas que quase escapam do enquadramento.
Leiter nasceu em 1923, em Pittsburgh, e mudou-se para Nova
York em 1946. Filho de um rabino conhecido por sua eloquência, ele estava
destinado ao estudo religioso. Mas preferiu o mistério da luz às certezas da
fé. Começou como pintor abstrato e, por volta de 1948, encontrou na fotografia
um novo modo de ver — um modo menos discursivo, mais sensorial.
A cor que chegou
antes do seu tempo
Enquanto o mundo da fotografia ainda girava em preto e
branco, Saul Leiter já explorava os matizes da cidade com sua câmera. Muito
antes de nomes como William Eggleston e Stephen Shore popularizarem a
fotografia colorida como forma legítima de expressão artística, Leiter já
caminhava com sua Leica pelas ruas do East Village, registrando cenas urbanas
que pareciam pinturas feitas de névoa, sombra e vidro.
Sua abordagem da cor não tinha a exuberância solar de outros
fotógrafos. Era discreta, quase tímida. Vermelhos e amarelos surgem atrás de
vitrines sujas, pessoas aparecem cortadas pela moldura da janela, guarda-chuvas
se tornam protagonistas acidentais. O que interessa a Leiter não é o centro da
cena, mas os cantos. A borda da realidade.
A moda como
sobrevivência — e laboratório visual
Pouca gente comenta que, paralelamente ao seu trabalho
autoral, Saul Leiter teve uma carreira longa e sólida como fotógrafo de moda. A
partir dos anos 1950, colaborou com revistas como Harper’s Bazaar, Elle
e Show. Era o tipo de trabalho que pagava as contas — e também permitia
explorar a composição, o uso da luz e a relação entre figura e fundo com
liberdade.
Seus ensaios de moda tinham o mesmo cuidado pictórico e o
mesmo senso de mistério que suas imagens de rua. Para Leiter, a beleza estava
tanto no arranjo da modelo quanto no reflexo no espelho atrás dela, ou no
borrão de cor que surgia por acidente. Nada era óbvio.
Slides guardados e
redescobertos
Talvez um dos detalhes mais surpreendentes da trajetória de
Leiter seja a existência de uma coleção enorme de slides coloridos — a maioria
deles nunca mostrados ao público durante sua vida ativa. Estimativas indicam
que ele tenha produzido mais de 40 mil slides Kodachrome, armazenados em
caixas, gavetas e pilhas desorganizadas em seu apartamento.
Esse acervo só veio à tona no início dos anos 2000, quando
Leiter, já idoso, começou a receber a atenção que lhe havia escapado por
décadas. O documentário In No Great Hurry: 13 Lessons in Life with Saul
Leiter (2013), dirigido por Thomas Leach, revela não só suas imagens como
também sua postura diante da vida: avessa à pressa, avessa à ideia de sucesso.
Algumas
curiosidades que dizem muito sobre ele
- Leiter
produziu mais de 40 mil slides coloridos — boa parte deles
esquecidos em pilhas e caixas em seu apartamento por décadas.
- Foi
um dos primeiros a experimentar fotografia de rua em cores, em um
tempo em que o preto e branco era considerado “sério” e a cor, algo
comercial demais.
- Trabalhou
por anos como fotógrafo de moda, mas sempre com uma abordagem
autoral, elegante e silenciosa.
- Em
uma ocasião, foi contratado para fotografar um editorial e poderia ter
escolhido qualquer lugar do mundo para a sessão. Ele escolheu… Nova
York. Sua Nova York.
- Seu
reconhecimento internacional veio tardiamente, já nos anos 2000,
quando exposições e livros redescobriram seu trabalho.
- No
documentário In No Great Hurry, ele aparece caminhando entre
negativos, slides, pincéis e janelas — tão relutante em jogar fora o que
viveu quanto em se vender como gênio.
- Ele
nunca se incomodou em “não ser famoso”. Dizia: "Acho que há coisas
mais importantes na vida do que saber o nome de um fotógrafo.”
Pintar com câmera
O estilo de Saul Leiter parece uma fusão muito pessoal entre
o olhar do pintor abstrato e a paciência do flâneur. Suas imagens
frequentemente mostram figuras cortadas, cenas parcialmente ocultas, reflexos
distorcidos — tudo com uma composição precisa, porém nada rígida. Ele brincava
com os limites da visibilidade, como se dissesse: “Ver tudo não é necessário
para compreender algo”.
A influência da pintura é clara, especialmente nas imagens
que usam camadas de elementos: vitrines, fumaça, chuva, sombras. A profundidade
é construída como num quadro, onde o espaço não é literal, mas sugerido. As
cores também têm um papel quase emocional. Tons quentes surgem em contraste com
áreas de sombra — e muitas vezes, é a cor que guia o olhar, não o assunto.
Leiter não era do tipo que esperava o momento decisivo. Pelo
contrário: ele acolhia a imperfeição, o desfoque, o acaso. Um poste que divide
a cena ao meio? Um rosto parcialmente escondido por um casaco? Um carro
passando bem na hora? Para ele, tudo isso era parte da composição.
O que ainda vemos
quando olhamos para Saul Leiter
Em um tempo em que a fotografia parece cada vez mais voltada
à nitidez, ao impacto imediato, às cores saturadas e às legendas explicativas,
a obra de Saul Leiter propõe outra coisa: o prazer do olhar demorado. A atenção
ao detalhe que se esconde. A poesia que se faz com luz, sombra e um pouco de
paciência.
Sua fotografia é um convite à contemplação — mas sem
grandiloquência. Ele não queria contar grandes histórias nem registrar eventos
históricos. Seu mundo era feito de gestos mínimos: alguém que passa, uma cor
que aparece, uma silhueta atravessada por uma gota no vidro.
O fato de ter sido redescoberto tão tardiamente talvez diga
muito sobre o tipo de artista que ele era. Um que não buscava aceitação, mas
coerência. Que nunca correu para acompanhar os movimentos da moda, embora tenha
fotografado para ela. Um fotógrafo que talvez estivesse mais interessado em ver
do que em mostrar.
Saul Leiter não revolucionou a fotografia com discursos nem
teorias. Ele a expandiu com gentileza — nos ensinando que beleza também é o que
deixamos escapar.
- Do canal Developing Tank no Youtube - Técnicas para criar fotografias únicas // Saul Leiter:
- Do canal Street Photography with Brian Lloyd Duckett: Grandes fotógrafos de rua - Saul Leiter:
- Do canal de Graeme Williams - Photographic Conversations: Um fotógrafo que amava abstração e beleza:
- Saul Leiter conversa com Vince Aletti:
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