Wednesday, April 16, 2025

STILL LIFE OU NATUREZA-MORTA - PARTE I | ANTES DA FOTOGRAFIA

A natureza-morta tem uma longa história que começa muito antes da fotografia. Os artistas já pintavam objetos inanimados há séculos, mas esse gênero realmente ganhou força no final do Renascimento e no Barroco. 

O que faz com que sejamos tão atraídos por composições de objetos inanimados? Por que seguimos montando cenários com frutas, flores, garrafas e utensílios do cotidiano? Esse gênero artístico, aparentemente simples, tem uma história rica e profunda, conectada à própria evolução da arte.

AS ORIGENS DA NATUREZA-MORTA

As primeiras representações de natureza-morta podem ser encontradas em mosaicos da Roma Antiga, onde alimentos e utensílios eram representados com um impressionante realismo. No entanto, foi no Renascimento que o gênero ganhou força, destacando-se como uma categoria independente dentro da pintura. No século XVII, os pintores flamengos e holandeses levaram a natureza-morta a um novo patamar, criando composições detalhadas que refletiam temas como a efemeridade da vida e a ostentação da riqueza.


O SIGNIFICADO DO TERMO

O termo "natureza-morta" vem do francês nature morte, que pode ser traduzido como "natureza falecida" ou "natureza sem vida". Em inglês, o termo still life sugere algo parado, em composição fixa, sem movimento. Essa nomenclatura reforça a ideia de que o gênero retrata objetos que foram deliberadamente organizados para contar uma história visual.

VANITAS E MEMENTO MORI

Dentro da tradição da natureza-morta, dois conceitos ganharam destaque especialmente na arte flamenga e holandesa do século XVII: vanitas e memento mori. As vanitas retratavam objetos simbólicos como caveiras, ampulhetas, frutas apodrecendo e velas prestes a se apagar, como lembretes da fugacidade da vida, da vaidade e da inevitabilidade da morte. Já o memento mori — expressão latina que significa “lembre-se de que vai morrer” — reforçava essa ideia com uma estética ainda mais direta, sugerindo contemplação e humildade diante do tempo e da mortalidade. Mais do que belos arranjos, essas obras eram meditações visuais sobre a existência humana.

O Vanitas de Philippe de Champaigne (c. 1671) é reduzido a três essenciais: Vida, Morte e Tempo

GRANDES ARTISTAS DA NATUREZA-MORTA

Na pintura, alguns nomes se destacam:

  • Caravaggio (1571-1610) introduziu um realismo dramático nas suas composições.

Natureza-Morta com Frutas (c. 1603)
  • Johannes Vermeer (1632-1675) incorporou elementos de natureza-morta em suas cenas domésticas.

A Leiteira (c.1660)
  • Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779) foi mestre na criação de atmosferas sutis e delicadas.

Natureza-Morta com Gato e Peixe (c.1750)
Vaso de Flores (c.1750)
Natureza-Morta com Caça (c.1750)
  • Francisco Goya (1746–1828) criou naturezas-mortas sombrias e intensas, marcadas por um realismo cru e emocional.

Natureza-Morta com Três Filés de Salmão (c.1808)

MULHERES NA NATUREZA-MORTA

Embora a história da arte tenha sido, por séculos, dominada por homens, a natureza-morta foi um dos poucos gêneros em que mulheres conseguiram se destacar desde cedo. Essa presença pode estar ligada ao fato de que a natureza-morta muitas vezes retratava objetos do cotidiano doméstico — espaço onde as mulheres eram mais aceitas como artistas. E, dentro desse território, algumas delas deixaram uma marca profunda.

A holandesa Rachel Ruysch (1664–1750), conhecida por suas composições florais ricamente detalhadas, e a francesa Anne Vallayer-Coster (1744–1818), elogiada por sua habilidade técnica e uso de cores vibrantes, são dois exemplos notáveis.

Mas nenhuma menção às pioneiras da natureza-morta estaria completa sem Clara Peeters (c. 1589 – depois de 1636), uma das primeiras mulheres a se especializar no gênero. Pintora flamenga em plena atividade no início do século XVII, Peeters enfrentou as limitações impostas às artistas de sua época com inteligência e talento. Suas obras exibem mesas fartas com queijos, peixes, taças douradas e pães retratados com minúcia impressionante — como se o silêncio do arranjo escondesse um sussurro de vida. Clara também encontrava formas engenhosas de deixar sua marca: costumava assinar suas obras gravando seu nome em facas ou canecas e, em algumas pinturas, chegou a se autorretratar nos reflexos de objetos metálicos. Um gesto sutil, mas poderoso, para garantir sua presença num mundo que tantas vezes tentou apagá-la.

Natureza-Morta com Queijos, Amêndoas e Pretzels (c.1615)


UM PASSO ANTES DO CLIQUE

Das frutas meticulosamente iluminadas nos salões barrocos às maçãs que desafiam as leis da gravidade nas telas de Cézanne (das quais falaremos na segunda parte dessa conversa), a natureza-morta passou por séculos de refinamento, contemplação e revolução. Esse olhar atento para o mundo dos objetos se mostrou não apenas uma escolha estética, mas também um exercício filosófico sobre o tempo, a vida, o efêmero e o que deixamos para trás.

E então, quando o homem inventou a fotografia, o que ele fez? Montou um cenário com objetos e clicou. Quase como um reflexo inevitável. 

No próximo post, vamos atravessar os séculos XIX e XX e descobrir como a natureza-morta encontrou novas possibilidades diante da câmera — da mesa do próprio Daguerre às experimentações contemporâneas, passando por simbolismos, vanguardas e até um pouco de irreverência.

VÍDEOS INTERESSANTES:

  • Do canal The Art Assignment - eles recriaram a pintura Natureza-Morta com queijos, Amêndoas e Pretzels de Clara Peeters (c.1615), a partir da descrição do catálogo da exposição descrita no link abaixo:


LINKS INTERESSANTES:

Natureza-Morta na Era de OuroEm 2017, o Mauritshuis — museu em Haia conhecido por sua coleção de mestres holandeses — apresentou uma exposição deliciosa (literalmente e metaforicamente) chamada Slow Food: Still Lifes of the Golden Age. A mostra reuniu pinturas de natureza-morta do século XVII que celebravam o prazer da mesa, o requinte dos ingredientes e o simbolismo escondido entre queijos, frutas, vinhos e conchas. Mais do que um desfile de banquetes visuais, a exposição nos lembrava de como o olhar atento aos objetos — e aos alimentos — carrega uma longa história cultural e artística. 

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