Monday, June 23, 2025

MARTIN PARR REAL FOOD

O fotógrafo britânico Martin Parr sempre demonstrou uma notável capacidade de transformar seus projetos fotográficos em obras acessíveis e altamente rentáveis. Ao longo de sua carreira, consolidou uma produção consistente, com livros fáceis de encontrar, ideias visualmente fortes e uma disposição invejável para realizar aquilo que acredita ser necessário — mesmo quando o resultado não agrada a todos.

Real Food, publicado pela Phaidon em 2016, é um exemplo cristalino desse método. Com mais de 200 imagens feitas entre 1994 e 2015, o livro compõe uma espécie de inventário global da comida ultraprocessada, vendida em vitrines tristes e consumida entre luzes de neon e guardanapos plastificados. De restaurantes populares na Inglaterra a barracas de comida no Japão, passando por vitrines no Rio de Janeiro, o projeto retrata, com crueza, aquilo que muitos prefeririam ignorar.

O design do livro já antecipa sua proposta visual: a capa imita uma toalha de mesa plastificada de pizzaria, com o título em relevo, evocando o ambiente kitsch que povoa as páginas internas. A introdução é assinada pelo chef Fergus Henderson, que estabelece um contraste entre esse trabalho e The Taste of France, de Robert Freson — clássico da "pornografia culinária", cheio de encenação e glamour. Ao contrário de Freson, que cruzava a França com o porta-malas cheio de acessórios para criar atmosferas, Parr surge apenas com sua câmera. E o que se vê é o que há: pratos que deterioram, vitrines com restos, alimentos fotografados sem o menor esforço de embelezamento.

A estética do livro é propositalmente agressiva. As cores são saturadas, o flash é direto, os enquadramentos são secos. Há referências visuais à fotografia publicitária dos anos 1950, com seu gosto duvidoso e texturas quase repulsivas. Poucas imagens despertam o desejo de comer; muitas provocam o oposto. Algumas cenas que mostram pessoas interagindo com os alimentos oferecem momentos mais interessantes e humanos — mas são minoria.

O livro, apesar de divertido de folhear, sofre com o excesso. Com cerca de 200 fotografias, torna-se cansativo. As sequências são muitas vezes óbvias, e a repetição do mesmo tom visual e discursivo acaba por enfraquecer o impacto. Além disso, o projeto gráfico apresenta escolhas questionáveis: o texto final está em fonte cursiva preta sobre fundo vermelho, ilegível; o índice, feito em ordem alfabética de países, torna difícil identificar o contexto de cada imagem.

Apesar das falhas, Real Food evidencia a principal qualidade de Parr como artista visual: a clareza de suas ideias e a obstinação em realizá-las. É um livro direto, irreverente e incômodo — que pouco se preocupa com a beleza, mas muito com o significado.

Parr não agrada a todos. Sua fotografia carrega, muitas vezes, um olhar irônico que beira o desprezo — especialmente quando dirigida às pessoas comuns. Ainda assim, sua trajetória profissional permanece como um exemplo de disciplina, inteligência de projeto e presença no mercado editorial. Real Food pode não estar entre seus trabalhos mais sofisticados, mas certamente é um dos mais emblemáticos de seu apetite visual pelo mundo como ele é: saturado, desequilibrado e desconfortável.

O bom

A ideia central do livro é excelente e inconfundivelmente Parr: transformar o vulgar em tema visual, o tosco em discurso, o ordinário em provocação. Real Food cumpre o que promete. É um projeto direto, acessível e executado com consistência. A seleção de imagens é coerente e o conceito é forte o suficiente para sustentar o livro — mesmo quando começa a se arrastar.

O ruim
A experiência de leitura sofre com escolhas de design que vão do impraticável ao irritante: fonte ilegível, índice desorganizado, excesso de imagens semelhantes que esvaziam o impacto visual. O livro parece crescer em volume à medida que o leitor avança, como um rodízio onde os pratos não param de chegar — mesmo quando já não há apetite.

O bonito
Quando a câmera flagra o momento em que alguém está prestes a dar uma mordida ou toma um milkshake com canudo, o livro ganha vida. As fotos em que há interação humana ultrapassam o tom documental e alcançam algo mais próximo da crônica visual. E há ali, em algumas composições, ecos da fotografia de alimentos retrô — não exatamente bela, mas com uma estranheza estética curiosamente encantadora.

O feio
Deliciosamente feio. E propositalmente. Nenhuma imagem pretende ser apetitosa. São comidas pálidas, derretidas, desfiguradas pela luz do flash e pelo tempo. É o feio como ferramenta crítica. Um feio que desconcerta. Um feio que diz: “é isso que estamos comendo, e estamos achando normal”.

Veredito final: vale a pena?

Vale — e vale muito mais como objeto de estudo do que como experiência visual prazerosa. Real Food não é um livro de grandes imagens, mas de uma grande ideia. É Parr fazendo aquilo que sabe fazer como poucos: transformar um tema banal em um comentário cultural afiado. Pode não emocionar como os grandes mestres da fotografia humanista, mas ensina como poucos sobre olhar, conceito e execução. E se não der fome, que pelo menos sirva para provocar alguma indigestão crítica.

 


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