Existe algo de radical no gesto de preservar o ordinário. Quando Lee Shulman fundou o Anonymous Project, em 2017, ele não estava apenas acumulando slides de família comprados em feiras de antiguidade. Estava, conscientemente, construindo um dos arquivos afetivos mais comoventes da fotografia vernacular contemporânea.
Colecionador obsessivo de imagens encontradas, Shulman é
cineasta de formação e um observador atento dos detalhes que contam histórias.
Sua coleção começou com uma caixa de slides Kodachrome dos anos 1950.
Fotografias feitas por amadores — pais, mães, tios, avós — registrando férias
na praia, aniversários infantis, jantares em família. Imagens que, a princípio,
não pareciam ter “valor” histórico. Mas é justamente nesse terreno da
não-excepcionalidade que reside o poder do Anonymous Project.
A proposta de Shulman é simples e, por isso mesmo,
brilhante: preservar e expor essas imagens como um espelho coletivo. É uma
arqueologia da vida cotidiana. Uma ode ao gesto de fotografar como forma de
existir no mundo. Sem pretensão artística. Sem curadoria autoral. Apenas a
honestidade do instante.
Ao expor esses slides — muitas vezes em caixas de luz,
simulando o gesto íntimo de olhar imagens com um projetor de slides em casa — o
Anonymous Project ressignifica o que entendemos como memória pública. A
intimidade que emana dessas fotos tem uma força narrativa que escapa ao
controle de seus autores originais. As pessoas retratadas não são famosas. Não
sabemos seus nomes. Mas reconhecemos suas expressões, suas roupas de verão,
seus copos de refrigerante, suas promessas de futuro. Porque são — em essência
— versões de nós mesmos.
Além da força do acervo em si, o Anonymous Project também tem rendido colaborações instigantes que expandem seus significados. Em Déja View, livro feito em parceria com Martin Parr, Shulman coloca em diálogo suas imagens anônimas com fotografias do próprio Parr, construindo uma narrativa visual onde o cotidiano, o humor e o absurdo se entrelaçam. Já a parceria com o artista senegalês Omar Victor Diop em Being There, que insere sua própria figura em imagens de arquivo, constrói uma potente reflexão sobre presença e ausência nos registros visuais da história. E não para por aí: Shulman também dirigiu um documentário sobre Martin Parr (I am Martin Parr), outro nome essencial quando falamos de fotografia do cotidiano, aproximando ainda mais os mundos da fotografia autoral e vernacular.
Shulman, que é britânico com residência entre Londres e
Paris, evita protagonismo. Seu nome aparece mais como guardião desse acervo do
que como autor. E isso é coerente com sua visão: ele não está se colocando como
artista, mas como mediador de memórias alheias. Isso, claro, não impede que sua
curadoria tenha um pulso estético claro — há uma escolha cuidadosa na paleta de
cores, nas atmosferas, nos anos retratados. A sensibilidade cinematográfica
está ali, mas sempre a serviço das histórias esquecidas.
Mais do que nostalgia, o Anonymous Project ativa uma espécie de empatia visual. Ele nos lembra que, por trás de cada slide de 35mm, há uma história que quase foi apagada. E que, às vezes, o que chamamos de banal é justamente aquilo que mais importa.
VÍDEOS INTERESSANTES:
- Robin's Book Club - Martin Parr & The Anonymous Project: Déja View
- Martin Parr & Lee Shulman em "I am Martin Parr":
LINKS INTERESSANTES
- o site oficial do The Anonymous Project contém centenas de fotografias separadas por temas.
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