“A base do que hoje conhecemos como fotografia de rua — o impulso de capturar imagens espontâneas e não ensaiadas no espaço público — faz parte do DNA da Magnum desde a sua fundação, em 1947.” — Stephen McLaren
Streetwise é um livro que celebra a cultura da fotografia de rua. Organizado pelo fotógrafo escocês Stephen McLaren, conhecido por outros títulos relevantes como Street Photography Now e Reclaim the Street (escrito com Matt Stuart), o livro foi lançado em 2019 pela Thames & Hudson e conta com o lindíssimo design da artista e designer Sarah Boris.
A palavra "streetwise" diz respeito à pessoa que gosta da vida e da atmosfera das ruas das grandes cidades, que sabe como se locomover na selva urbana e entende como esse ambiente funciona. O livro traduz bem esse espírito, trazendo fotografias feitas desde os anos 1930 até os dias de hoje, com uma edição que visa, entre outras coisas, dar visibilidade a projetos fotográficos menos conhecidos dos seus associados. Esse objetivo, aliás, foi muito bem alcançado.
O livro é organizado em três partes: uma dedicada aos temas clássicos da fotografia de rua (reflexos, sombras, vitrines, multidões), outra às cidades icônicas (como Nova York, Tóquio, Paris e — pasmem — uma quantidade impressionante de imagens da Coreia do Norte, que parece quase uma obsessão da agência) e uma terceira voltada a atividades em locais públicos, como mercados, espaços de lazer e os chamados não-lugares, como estações e aeroportos, onde as pessoas estão apenas de passagem. Muito bacana, mas também muito óbvio.
ONDE O LIVRO ACERTOU (E MUITO)
A divisão temática é um ponto forte: os capítulos funcionam como vitrines organizadas por assunto, o que permite perceber como diferentes fotógrafos abordam um mesmo elemento — a luz dura do meio-dia, o reflexo num vidro, o vai-e-vem dos transeuntes. Cartier-Bresson, Bruce Davidson, Elliott Erwitt, Martin Parr, Bruce Gilden, Alex Webb e tantos outros aparecem com trabalhos representativos e, por vezes, surpreendentes.
A curadoria visual é cuidadosa: além das fotos icônicas, há espaço para imagens menos conhecidas que renovam o olhar até sobre mestres consagrados. A sequência é fluida, com uma montagem que parece feita por quem entende a cadência das ruas. E aqui vale um parêntese de entusiasmo: a qualidade gráfica do livro é primorosa. A impressão respeita os pretos densos, os brancos vibrantes e as cores complexas que tantos desses fotógrafos exploram com maestria. O acabamento é caprichado, o papel tem boa gramatura e toque suave — é um daqueles livros que dá gosto folhear (e mais ainda deixar aberto na mesa só pra contemplar).
E tem mais: os perfis individuais de 30 membros da Magnum são, sem dúvida, a parte mais rica do livro. Como os livros de muitos deles são difíceis de encontrar (ou têm preços proibitivos quando isso acontece), é uma satisfação poder ter um recorte de seus trabalhos na estante. Gostei especialmente de conhecer melhor a fotografia de Constantine Manos e Susan Meiselas, com quem não tinha tanta familiaridade. E, claro, foi um deleite rever obras dos eternos favoritos como Gilden, Gruyaert e Erwitt.
O QUE PODERIA TER SIDO MELHOR
A primeira limitação está no próprio conceito: o livro se concentra exclusivamente em fotógrafos da Magnum. É uma escolha editorial coerente, claro, mas que acaba soando um tanto autocentrada. Como falar de fotografia de rua sem Daido Moriyama? Sem os Provoke? Sem Walker Evans, Winogrand e Friedlander? Sem tantos nomes latino-americanos, africanos, asiáticos que expandem a linguagem do gênero para além dos centros tradicionais? A resposta é: não dá — e o livro não tenta. Ele se contenta em falar da rua como vista por dentro da casa Magnum.
Além disso, os textos que acompanham as fotos são descritivos e seguros demais, até um tanto monótonos. Em vez de analisar criticamente as imagens ou a evolução do gênero, eles se limitam a contextualizar. Falta conflito, falta estranhamento, falta o incômodo que a rua às vezes exige.
No que diz respeito às cidades escolhidas, é impossível não destacar Paris, que por conta da tradição iniciada por Kertész, Brassaï e Doisneau, pode ser considerada o berço da fotografia de rua. Mas, ao mesmo tempo, a seleção dos locais permanece dentro do já esperado — faltam surpresas.
O BONITO
A sequência visual do livro é seu ponto alto. Mesmo sem textos provocativos, a narrativa construída pelas imagens é poderosa. Há trechos inteiros que parecem conversar entre si — como se Cartier-Bresson soprasse um “decisive moment” aqui e Webb respondesse com um “momento explosivo” logo ali.
Além disso, é um ótimo material para estudo. Quem está aprendendo ou refinando o olhar vai encontrar ali uma aula visual sobre composição, timing, uso da luz e construção de narrativa dentro de um único quadro.
O FEIO (MAS NEM TANTO...)
A ausência de fotógrafos de fora da agência é compreensível — o livro é, afinal, um produto da própria Magnum — mas isso também o limita. Ao se concentrar apenas em sua “família”, o Streetwise deixa de lado outras vozes fundamentais do gênero, especialmente fora do eixo euro-americano.
E ao evitar qualquer tensão nos textos, a publicação se distancia do que faz a fotografia de rua ser o que é: o inesperado, o contraditório, o ruído da cidade. Em alguns momentos, o livro parece olhar a rua pela janela de um escritório bem iluminado — bonito, sim, mas longe da calçada.
VALE A PENA?
Sim, é um bom livro para ter à mão, folhear, estudar. Streetwise é um livro belíssimo e uma boa introdução à fotografia de rua dentro da Magnum. Funciona como um passeio guiado com fotógrafos lendários, com momentos de puro encantamento visual. Só não espere encontrar aqui todas as vozes da rua — nem todas as suas discordâncias. Para isso, você ainda vai ter que virar a esquina e procurar outros caminhos. E talvez seja exatamente esse o mérito do livro: mostrar onde começa a rua… e deixar em aberto pra onde ela pode te levar.
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