“Ele estava sempre presente. Estava sempre nas sombras. Eu fazia a apresentação e depois seguia com meu trabalho como se ele fosse apenas uma maçaneta.” - Dr. Ernest Ceriani (falando de W. Eugene Smith)
Quando a revista Life publicou Country Doctor em 1948, a intenção parecia clara: responder a uma preocupação crescente da medicina norte-americana. A American Medical Association (AMA) havia solicitado à revista que abordasse o problema da falta de clínicos gerais em áreas rurais — cada vez mais médicos preferiam se especializar e estabelecer carreira nas grandes cidades, deixando pequenas comunidades sem assistência. Ao mesmo tempo, a discussão sobre sistemas de saúde pública ganhava força, com os Estados Unidos tentando seguir a tendência europeia de caminhar em direção a uma cobertura universal. Era, portanto, um tema de política médica e social, mais do que um simples retrato de um profissional.
O escolhido para protagonizar essa reportagem foi o Dr. Ernest Ceriani, um clínico geral de 32 anos que atendia sozinho uma comunidade de duas mil pessoas em Kremmling, uma cidade isolada no interior do Colorado. Jovem, dinâmico e fotogênico o suficiente para atrair os leitores da Life, Ceriani foi indicado pela Sociedade Médica do Colorado como representante exemplar de uma categoria que se tornava cada vez mais rara.
A revista enviou para lá W. Eugene Smith, já conhecido por seu perfeccionismo e pela habilidade de transformar a vida comum em narrativa épica. Ele permaneceu 23 dias em Kremmling, acompanhando cada passo do médico. Sua estratégia era clara: colar-se a Ceriani até que sua presença deixasse de ser notada, ganhando liberdade para registrar tanto os momentos de heroísmo quanto os de exaustão e fragilidade. O resultado foi uma cobertura que, de início, incomodou tanto o médico quanto seus pacientes, mas que aos poucos se transformou em convivência quase invisível.
Smith entregou 200 fotografias à Life. A revista publicou apenas 27. Ainda assim, foi o suficiente para transformar o Dr. Ceriani em celebridade instantânea: para milhões de leitores — a Life tinha então mais de vinte milhões de assinantes —, ele passou a encarnar os melhores aspectos da dedicação humana. A narrativa visual de Smith elevava a figura de um médico de cidade pequena a um patamar quase mítico, em que cada gesto era carregado de dignidade.
Mas o efeito da reportagem foi paradoxal. Se por um lado Country Doctor entrou para a história como um marco no ensaio fotojornalístico — com sua narrativa construída de forma quase literária, costurada pela visão rigorosa e empática de Smith —, por outro falhou em cumprir o objetivo original da AMA. O público ficou tão fascinado pela figura do Dr. Ceriani que ignorou a questão estrutural: a crise na medicina rural norte-americana. A história que deveria funcionar como alerta social acabou funcionando como elegia a uma profissão em vias de desaparecer.
É nesse ponto que reside a força e a ironia de Country Doctor. Ele permanece como um dos ensaios mais estudados de todos os tempos não apenas pela maestria formal, mas também porque cristalizou em imagens a beleza e a tragédia de algo que já estava se tornando passado. O olhar de Smith, capaz de transformar o comum em heroico, deu a Ceriani a imortalidade fotográfica — e ao mesmo tempo selou, quase sem querer, o registro de um modo de vida em extinção.
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