O fotógrafo britânico Martin Parr sempre demonstrou uma notável capacidade de transformar seus projetos fotográficos em obras acessíveis e altamente rentáveis. Ao longo de sua carreira, consolidou uma produção consistente, com livros fáceis de encontrar, ideias visualmente fortes e uma disposição invejável para realizar aquilo que acredita ser necessário — mesmo quando o resultado não agrada a todos.
Real Food, publicado pela Phaidon em 2016, é um
exemplo cristalino desse método. Com mais de 200 imagens feitas entre 1994 e
2015, o livro compõe uma espécie de inventário global da comida
ultraprocessada, vendida em vitrines tristes e consumida entre luzes de neon e
guardanapos plastificados. De restaurantes populares na Inglaterra a barracas
de comida no Japão, passando por vitrines no Rio de Janeiro, o projeto retrata,
com crueza, aquilo que muitos prefeririam ignorar.
O design do livro já antecipa sua proposta visual: a capa
imita uma toalha de mesa plastificada de pizzaria, com o título em relevo,
evocando o ambiente kitsch que povoa as páginas internas. A introdução é
assinada pelo chef Fergus Henderson, que estabelece um contraste entre esse
trabalho e The Taste of France, de Robert Freson — clássico da
"pornografia culinária", cheio de encenação e glamour. Ao contrário
de Freson, que cruzava a França com o porta-malas cheio de acessórios para
criar atmosferas, Parr surge apenas com sua câmera. E o que se vê é o que há:
pratos que deterioram, vitrines com restos, alimentos fotografados sem o menor
esforço de embelezamento.
A estética do livro é propositalmente agressiva. As cores
são saturadas, o flash é direto, os enquadramentos são secos. Há referências
visuais à fotografia publicitária dos anos 1950, com seu gosto duvidoso e
texturas quase repulsivas. Poucas imagens despertam o desejo de comer; muitas
provocam o oposto. Algumas cenas que mostram pessoas interagindo com os
alimentos oferecem momentos mais interessantes e humanos — mas são minoria.
O livro, apesar de divertido de folhear, sofre com o
excesso. Com cerca de 200 fotografias, torna-se cansativo. As sequências são
muitas vezes óbvias, e a repetição do mesmo tom visual e discursivo acaba por
enfraquecer o impacto. Além disso, o projeto gráfico apresenta escolhas
questionáveis: o texto final está em fonte cursiva preta sobre fundo vermelho,
ilegível; o índice, feito em ordem alfabética de países, torna difícil
identificar o contexto de cada imagem.
Apesar das falhas, Real Food evidencia a principal
qualidade de Parr como artista visual: a clareza de suas ideias e a obstinação
em realizá-las. É um livro direto, irreverente e incômodo — que pouco se
preocupa com a beleza, mas muito com o significado.
Parr não agrada a todos. Sua fotografia carrega, muitas
vezes, um olhar irônico que beira o desprezo — especialmente quando dirigida às
pessoas comuns. Ainda assim, sua trajetória profissional permanece como um
exemplo de disciplina, inteligência de projeto e presença no mercado editorial.
Real Food pode não estar entre seus trabalhos mais sofisticados, mas
certamente é um dos mais emblemáticos de seu apetite visual pelo mundo como ele
é: saturado, desequilibrado e desconfortável.
O bom
A ideia central do livro é excelente e inconfundivelmente Parr:
transformar o vulgar em tema visual, o tosco em discurso, o ordinário em
provocação. Real Food cumpre o que promete. É um projeto direto,
acessível e executado com consistência. A seleção de imagens é coerente e o
conceito é forte o suficiente para sustentar o livro — mesmo quando começa a se
arrastar.
O ruim
A experiência de leitura sofre com escolhas de design que vão do
impraticável ao irritante: fonte ilegível, índice desorganizado, excesso de
imagens semelhantes que esvaziam o impacto visual. O livro parece crescer em
volume à medida que o leitor avança, como um rodízio onde os pratos não param
de chegar — mesmo quando já não há apetite.
O bonito
Quando a câmera flagra o momento em que alguém está prestes a dar uma mordida
ou toma um milkshake com canudo, o livro ganha vida. As fotos em que há
interação humana ultrapassam o tom documental e alcançam algo mais próximo da
crônica visual. E há ali, em algumas composições, ecos da fotografia de
alimentos retrô — não exatamente bela, mas com uma estranheza estética
curiosamente encantadora.
O feio
Deliciosamente feio. E propositalmente. Nenhuma imagem pretende ser apetitosa.
São comidas pálidas, derretidas, desfiguradas pela luz do flash e pelo tempo. É
o feio como ferramenta crítica. Um feio que desconcerta. Um feio que diz: “é
isso que estamos comendo, e estamos achando normal”.
Veredito final:
vale a pena?
Vale — e vale muito mais como objeto de estudo do que como
experiência visual prazerosa. Real Food não é um livro de grandes
imagens, mas de uma grande ideia. É Parr fazendo aquilo que sabe fazer como
poucos: transformar um tema banal em um comentário cultural afiado. Pode não
emocionar como os grandes mestres da fotografia humanista, mas ensina como
poucos sobre olhar, conceito e execução. E se não der fome, que pelo menos
sirva para provocar alguma indigestão crítica.
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