Friday, October 24, 2025

THOMAS ROMA E OS CACHORROS DE PLATÃO

“Alguns lembram lobos temíveis, outros búfalos estoicos, e outros uma criatura totalmente nova — mas nunca um pet, nunca o animal que depois dormirá aos pés da sua cama.” — Thomas Roma

Thomas Roma nasceu no Brooklyn, em 1950, e construiu sua carreira olhando para Nova York com rigor e constância. Entre igrejas afro-americanas (Come Sunday, 1996), encontros clandestinos em Prospect Park (In the Vale of Cashmere, 2015) e retratos de vizinhança, sua obra traça um mapa íntimo da cidade. Também foi professor na Columbia University, onde transmitiu a mesma disciplina que moldava seu trabalho autoral.

Em Plato’s Dog (2005), Roma dirige a câmera para os cães nova-iorquinos. A escolha poderia sugerir leveza, mas o resultado se distancia do pitoresco. Fotografados com enquadramentos frontais, posturas assertivas e uma seriedade quase documental, esses animais surgem como presenças plenas, despojadas da familiaridade doméstica. São sombras da vida urbana, reflexos que evocam a velha alegoria da caverna — lembrando que a fotografia, como observou Susan Sontag de passagem, é sempre substituto, nunca a coisa em si.

A força do livro está nesse deslocamento. Ao recusar a imagem do cão como “pet”, Roma o reinscreve no campo do retrato. A cada página, o animal é menos um objeto de afeto e mais um sujeito de olhar, situado dentro da mesma gramática que ele já aplicava a fiéis, estranhos ou amantes. A fotografia, aqui, não distingue hierarquias: ela democratiza a presença, atribui dignidade ao que usualmente é reduzido ao banal.

No fim, Plato’s Dog não é apenas um livro sobre cães, mas sobre o modo como olhamos. Roma nos lembra que cada fotografia é sempre uma sombra, mas nem por isso menos verdadeira. Ao fixar esses animais com a gravidade de retratos clássicos, ele desloca nossa percepção e reafirma que a dignidade está no olhar — tanto do fotógrafo quanto de quem observa.


LEITURAS INTERESSANTES:

Friday, October 17, 2025

STANLEY KUBRICK ANTES DE HOLLYWOOD

“Para fazer um filme inteiramente por conta própria, como eu fiz no início da carreira, talvez você não precise saber muita coisa sobre o resto — mas precisa saber de fotografia.”— Stanley Kubrick

Stanley Kubrick nasceu no Bronx em 26 de julho de 1928, filho de uma família judaica de classe média que vivia entre o conforto modesto e as tensões de uma cidade em mutação. A Nova York dos anos 1940 era um organismo febril: arranha-céus que anunciavam modernidade, ruas ainda marcadas pela Grande Depressão, jazz ecoando em clubes noturnos, e a sombra da guerra recém-terminada. Foi nesse cenário que o adolescente introvertido, pouco aplicado nos estudos, descobriu um refúgio na observação obsessiva. Aos 13 anos, ganhou de seu pai uma câmera fotográfica, que se tornaria extensão inseparável de sua curiosidade visual. Sem qualquer formação formal, aprendeu sozinho a dominar técnica e linguagem, tornando-se um autodidata obstinado. Aos 17 anos, ofereceu algumas imagens à revista Look, que não apenas comprou parte delas, como também decidiu contratá-lo. Sua primeira publicação foi um retrato pungente de um jornaleiro em prantos diante da morte de Franklin D. Roosevelt – imagem de dor pública e teatralidade espontânea. Não foi apenas a estreia de um jovem amador, mas o anúncio precoce de um talento que faria da vida comum um palco de narrativas mais amplas.

Entre 1946 e 1951, Kubrick percorreu Nova York como fotógrafo da Look, transformando a metrópole em um laboratório visual. Seus ensaios revelam uma fixação pelo detalhe, pela composição geométrica e pelo drama condensado em pequenos gestos. Em “Prizefighter”, de 1949, acompanha a rotina de um boxeador de segunda linha, não pelo glamour do ringue, mas pela dureza dos treinos, pelo suor dos vestiários, pela solidão após o espetáculo. Já em “Life and Love on the New York Subway”, de 1947, suas lentes capturam casais e estranhos comprimidos no vagão subterrâneo, como se cada olhar fugidio fosse o fragmento de um enredo maior. O paralelo imediato é com Many Are Called, de Walker Evans, fotolivro que reuniu imagens clandestinas feitas no metrô de Nova York nos anos 1930 e 40. Evans perseguia a honestidade absoluta do anonimato, enquanto Kubrick, embora em contexto editorial, explorava a teatralidade implícita na convivência forçada dos passageiros. Ambos revelaram, cada um à sua maneira, o metrô como palco da vida urbana – lugar de anonimato coletivo e de histórias íntimas em suspensão. Até em cenas aparentemente banais – um vendedor de sapatos, um casal em um encontro desajeitado, uma criança à espera – percebe-se o rigor quase matemático da construção da imagem e o faro clínico para o comportamento humano.

Essas fotografias, embora publicadas em uma revista popular, trazem algo que as diferencia do fotojornalismo típico da época. Kubrick não estava interessado em congelar o instante decisivo à maneira de Cartier-Bresson, nem em dramatizar a miséria urbana como Weegee. Seu interesse residia na mise-en-scène da vida real: a forma como a luz, o enquadramento e a repetição dos gestos transformavam o banal em espetáculo silencioso. Era, em essência, a prática de um cineasta ainda preso à fotografia.

Antes de conquistar Hollywood com narrativas visuais de precisão implacável, Kubrick ensaiava na Look o vocabulário que mais tarde reconhecemos em 2001: Uma Odisseia no Espaço ou O Iluminado: a geometria da cena, a ironia subjacente, a inquietação diante do humano. Suas imagens de juventude mostram que ele nunca deixou de ser fotógrafo; apenas ampliou a moldura, trocando a página impressa pela tela de cinema.


VÍDEOS INTERESSANTES:
  • Livro "Through a Different Lens: Stanley Kubrick Photographs:

  • Show & Tell Episódio 20 - A Fotografia de Stanley Kubrick (Stephen Leslie):

LEITURAS INTERESSANTES:



Wednesday, October 8, 2025

A ESCOLA DE DUSSELDORF - DOS BECHER AOS FOTÓGRAFOS QUE REINVENTARAM A FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA


Na década de 1980, a fotografia alemã passou a ocupar um espaço central no discurso da arte contemporânea. O epicentro dessa transformação foi o Kunstakademie Düsseldorf, onde Bernd Becher, como professor, e Hilla Becher, como parceira constante nas discussões e no acompanhamento dos alunos, já consolidados como mestres da tipologia fotográfica, formaram uma geração que soube dialogar com a tradição, mas também romper com ela. O que se convencionou chamar de “Escola de Düsseldorf” não é uma escola formal, mas sim uma genealogia: um grupo de fotógrafos que partiu da disciplina meticulosa dos Becher e se projetou para horizontes muito mais amplos, tanto estética quanto comercialmente. Entre eles, cinco nomes se tornaram paradigmáticos: Candida Höfer, Axel Hütte, Thomas Struth, Andreas Gursky e Thomas Ruff.

Candida Höfer (n. 1944) levou a disciplina formal dos Becher para o território da cultura institucional. Suas imagens de bibliotecas, teatros e museus parecem inventários silenciosos, mas na ausência humana há uma crítica velada: são espaços públicos que dependem de corpos, mas se tornam monumentos vazios quando abandonados. Höfer manteve o rigor da frontalidade, mas expandiu-o para o campo da memória coletiva — menos catálogo, mais arqueologia.

Axel Hütte (n. 1951): Enquanto os Becher construíam arquivos da indústria, Hütte mergulhou em paisagens que desafiam a ideia de documento. Suas montanhas e florestas são registros tão precisos quanto enigmáticos, tensionando a neutralidade herdada. É o discípulo que mais suavemente distorceu a matriz: em vez de sistematizar, ele suspende.

Thomas Struth (n. 1954): De seus retratos de famílias até as cenas em museus, ele manteve a frontalidade becheriana, mas a colocou a serviço da observação das relações humanas. O que nos Becher era distanciamento quase científico, em Struth vira análise de comportamento. Ele não rompeu, mas reprogramou a herança: em vez de usinas e silos, famílias e turistas.

Andreas Gursky (n. 1955): Seus supermercados e bolsas de valores são herdeiros diretos da repetição e da frontalidade dos Becher, mas hipertrofiados até o monumental. Se os mestres colecionavam tipologias, Gursky coleciona o mundo globalizado. Ao manipular digitalmente suas imagens, ele rompe o pacto com a neutralidade e cria um hiper-real que seduz tanto museus quanto colecionadores. É o mais bem-sucedido financeiramente, mas também o que mais teatralizou a herança.

Thomas Ruff (n. 1958) foi o que levou a radicalidade conceitual às últimas consequências. Começou com retratos neutros que quase replicavam o distanciamento dos Becher, mas logo passou a tensionar o medium: pornografia pixelada, imagens de satélite, manipulações digitais. Ruff não apenas expandiu a fotografia; ele a questionou desde dentro, mostrando que o legado dos Becher podia servir como alavanca para desconstruir o próprio estatuto da imagem

Se a formação acadêmica forneceu a base, o mercado de arte garantiu a projeção. Nesse ponto, a figura do marchand David Zwirner foi decisiva. Filho de Rudolf Zwirner — pioneiro do comércio de arte contemporânea na Alemanha —, David consolidou em Nova York, a partir da década de 1990, uma galeria que se tornou plataforma global para essa geração. Representando nomes como Struth, Ruff e especialmente Gursky, Zwirner ajudou a legitimar a fotografia como objeto de coleção e a inseri-la no mesmo circuito dos grandes pintores e escultores contemporâneos. Sua atuação não foi apenas comercial, mas também institucional, articulando exposições e publicações que cristalizaram a Escola de Düsseldorf como um capítulo central da história recente da fotografia.

A chamada Escola de Düsseldorf, portanto, não é apenas um conjunto de fotógrafos formados sob os Becher, mas uma virada cultural: a transição da fotografia de disciplina quase artesanal para protagonista da cena internacional, capaz de rivalizar com as linguagens tradicionais da arte.

VÍDEOS INTERESSANTES:

  • Stephen Shore: La Brea, o ponto de origem (Lapis Press). 

Um projeto levou seis fotógrafos alemães a Los Angeles para investigar a influência de Stephen Shore e da New American Color Photography dos anos 1970. O marco desse diálogo foi a foto “La Brea Avenue and Beverly Boulevard, 1975”, vista como ponto de encontro entre os olhares americano e alemão.

A história começou em 1976, quando os Becher adquiriram uma cópia da imagem e passaram a mostrá-la a seus alunos em Düsseldorf. Para Struth, Höfer e Hütte, foi o primeiro contato com a fotografia em cor americana. A foto ainda ganhou espaço na Documenta 6 (1977) e no livro The New Color Photography (1981). O diálogo reverberou em obras como a série “Unconscious Places”, de Thomas Struth, inspirada diretamente em Uncommon Places, de Shore.


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